Depois de atenta leitura e leve estudo sobre o trabalho do meu trisavô Guilherme João Carlos Henriques achei por bem referenciá-lo numa enciclopédia virtual aqui na Internet, a Wikipédia. Mas à medida que ia levantando informarção para a colocar on-line, multiplicavam-se os interesses específicos e o número de nomes e referências que apareciam era cada vez maior, interligando-se numa interminável teia de panorama histórico que me prendeu desde o início até aqui, o que penso ser o primeiro passo no encalço do trabalho deste meu antepassado.

Em paralelo tenho vindo a desenvolver uma também iniciática investigação genealógica com o objectivo de reconstruir a árvore da famí­lia. Como nestes campos os resultados de busca se tornam tão dispersos como ricos, e como julgo como primeiro bem necessário a partilha de conhecimento, coloco todo o trabalho reunido que considero relevante em domí­nio público julgando com isso oferecer, através do meu lazer, alguma informação a quem por ela se interesse. Para esta 5.ª edição não oficial do trabalho de investigação sobre a Quinta da Carnota, transcrevi os textos referentes para o computador, corrigindo-os, adaptando-os e juntando-lhes toda a informação gráfica contemporãnea e antiga que já tinha da pesquisa genealógica. Sabendo que depois da sua aquisição pelo Conde de Carnota, a Quinta passou a ser uma casa de famí­lia que, embora já separadas, casa e família ainda hoje existem. Por isso e nas Épocas referentes ás edições da obra original apresento a versão aumentada de um novo valor, o valor histórico de uma famí­lia.
Guilherme Noronha

Junho de 2006

Uma das mais lindas propriedades do concelho e das mais antigas, com a vantagem de se achar em razoável estado de conservação, é a Quinta da Carnota, á beira da estrada dos Cadafaes a Santa Ana da Carnota, um pouco para diante do lugar dos Refugidos. O muro da cerca, do lado dos Cadafaes, é o limite a freguesia de Sto. Estêvão, naquela direcção.
A maior parte da cerca pertencia, antes de 1400, à Quinta da Carnota, hoje chamada do Amaral, que era do mosteiro de Odivelas. À mesma quinta pertencem ainda as três terras, mato e olival, que ficam para o Noroeste da cerca, e entre esta (ou a estrada) e o rio. Em 1408 foi separada do resto da quinta para se fundar nela um convento de frades menores, o que sucedeu pela seguinte forma:
Tinham já decorrido três quartos do século XIV, quando, na Igreja Católica, nasceu a célebre dissensão conhecida na história pelo título de o Grande Sisma Ocidental. Desde o princípio daquele século, a sede papal achava-se fixada em Avignon, na França; mas, no papado de Gregório XI (Pedro Rogério de Beaufort * França, Limoges, Castelo de Maumont 1331 + Roma 27.03.1378, 201.º PAPA, 7.º e último em Avignon), em 1376, a cadeira de S. Pedro tornou a localizar-se em Roma, donde, havia setenta e um anos, andava afugentada. Morreu Gregório e, com a eleição de Urbano VI (Bartolomeu Prignano * Itália, Nápoles c. 1318 + Roma 15.10.1389) para Papa, em 1378, surgiram divergências, em todo o orbe católico; porque parte dos cardeais, havendo a eleição dele por menos legal, ele­geram outro sucessor de Gregório XI na pessoa de Cle­mente VII (Roberto de Genève * Annecy 1342 + Avignon 16.09.1394), intitulado o Anti-Papa, que fixou a sua resi­dência em Avignon.
Durante quarenta e um anos andaram os católicos assim divididos, alguns países reconhecendo Urbano e outros Clemente. Os países que aceitaram este foram a França, Sabóia, Nápoles, e algumas partes da Espanha. Portugal e os países católicos restantes aderiram a Urbano.
Como é fácil de imaginar, mesmo nestes países as opiniões não eram unânimes. Em todos havia uma maio­ria e, portanto, uma minoria divergente; e, como sucede sempre, as minorias tiveram de sofrer, pelas suas opi­niões, os ódios e os maus-tratos das maiorias, tanto mais violentos pela questão ser religiosa.
A polémica envolveu todas as camadas sociais, e os conventos não ficaram isentos da desarmonia; seguindo dai opressões e vinganças da parte dos que mais avul­tavam, contra os que eram em menor número.
Assim aconteceu em uma casa franciscana da provín­cia de São Tiago, na Galiza, aonde o rancor religioso dos partidos se tornou tão insuportável que cinco dos irmãos mais afamados de virtude, e eminentes em teologia, saíram do convento, e procuraram abrigo em terras de Portugal. Foram eles:
. Fr. Diogo de Árias, asturiano, grande letrado e insigne pregador;
. Fr. Gonçalo Marinho, filho e herdeiro da esclarecida casa de Altamira e de muitas outras villas e castellos;
. Fr. Pedro de Alamancos;
. Fr. Francisco Sallo;
. Fr. Garcia de Montarias;
Apenas entrados em Portugal, começaram uma espé­cie de missão, chamando os povos á religião, e os Reli­giosos de profissão a mais estreita observância de seus votos e regra, de que, segundo parece, andavam, então, bastante afastados. Atraíram prosélitos em grande número, e conceberam a ideia de fundar novos conventos, dos quais o primeiro foi o albergue do Mosteiro, próximo de Valença do Minho.
Chegou a notícia destes santos varões á corte de D. João I (* Lisboa, São João da Praça (extinta) 11.04.1357 + Lisboa, Castelo 14.08.1433, 10.º Rei de Portugal r.1385-1433), nos últimos anos do século XIV; e, em 1400, el-rei os mandou chamar a Lisboa, para reformarem o convento de S. Francisco de Alenquer, que, sendo o mais antigo da Ordem, estava em tal estado de anarquia que se achava quase abandonado pelos conventuais. Em vir­tude da Ordem Régia, Fr. Diogo de Árias e mais três companheiros partiram para a capital – deixando Fr. Gon­çalo Marinho encarregado do ensino dos noviços já admi­tidos no Minho – munidos das precisas licenças, reforma­ram o convento de Alenquer; e achando boa disposição da parte d’El-Rei, resolveram tornar as terras em redor de Lisboa, o campo inicial da sua empresa do engrande­cimento da Ordem Seráfica em Portugal.
Começaram, fundando o convento de Santo António da Castanheira, e depois, procurando constantemente lugares adequados para novas casas, tiveram noticia do sítio do convento actual da Carnota, onde parece que nada havia senão uma ermidasinha, com uma imagem de Santa Catarina que tinha vindo da capela primitiva do con­vento daquele orago, ao pé de Alenquer, quando foi arruinada pelas cheias invernais do rio que passa pela vila.
Pediram licença a El-rei para fundar um convento; e ele, comprando ás freiras de Odivelas o terreno que se dizia ser preciso, pelo preço de oito mil libras, que cor­responde a 288$000 réis de dinheiro moderno (1914), com Ré­gia munificencia fez dele doação aos frades que, com as esmolas que obtiveram dos fieis, erigiram uma casa para onze frades e o guardião.
Ainda existe cópia da escritura da compra, que era do seguinte teor (1):
«Saíbão quantos este estromento virem que na era de mil quatrocentos e oito annos, vinte e trez dias do mez de Setembro, no Mosteiro de Odivellas, termo de Lisboa, na claustra do dito Mosteiro, estando no dito lugar D. Aldonça Pimentel, Abbadessa de dito Mosteiro e Constança Lourenço, Prioreza, e a Superioreza Beatriz Lourenço, e Guimar Annes e Leonor Affonso e Leonor Martins, Monjas professas do dito Mosteiro, e outras Monjas em convento do dito Mosteiro todas juntas chamadas por campa tangida, em presença de mim Affonso Guterres, Tabellião d'El-rey, segundo e costume em esta mesma; e testemunhas ao diante propostas, as ditas a Abbadessa e Prioreza e Superioreza e Monjas e Convento do dito Mosteiro disserão, que verdade era que El-rey D. João de Portugal, que Deos mantenha, lhe tomara a ellas, e ao dito mosteiro e convento hum lugar livre, onde está huma ermida, que he onde chamão Santa Catharina da Carnota, termo da Lamquer, para se fazer ahi um Oratório de frades de S. Francisco; e o dito Senhor Rey o mandára avaliar quanto valia para lhe pagar a ellas e ao dito mosteiro, o qual lugar fora avaliado em sete mil liberas desta moeda que hora corre por homens bons, e que o dito Senhor Rey lhe mandara dar oito mil libras para ellas haverem de comprar outra possessão melhor para o dito Mosteiro, as quaes oito mil liberas ellas cobrarão, e confessarão que receberão já do dito Senhor Rey por Gonçalo Anhes de Castello Branco, Escudeiro do Mestre de Aviz, que lhe os ditos dinheiros pagou presente mim testemunha, digo Tabellião, e testemunhas ao diante propostas. E porem as ditas Abbadessa e Prioreza e Superioreza e Monjas e Convento disserão que por quanto o dicto lugar, que lhes assi o dito Senhor comprara para o dito Oratório, era sem proveito nenhum, que nunca ellas nem o dito Mosteiro delle houvessem nem podessem haver, que por tanto renunciavam todo o direito que a elles haviam ellas e o dito Mosteiro e Convento, e o punhão em os frades da dita Ordem de S. Francisco para quem o dito lugar era, porque era proveito de Deos. E por quanto entendião que as ditas oito mil liberas havião de ser empregadas em outra possessão para o dito Mosteiro em melhor lugar, e mais proveitoso; e logo outro si frei Gonsalo, frade da dita ordem de S. Francisco, que presente estava, em nome dos ditos frades de S. Francisco pedio assi huma testemunha, e quantas mais houvesse. Testemunha, Affonso Pires, escudeiro, morador em Santarem na freguezia S. João, e o dito Gonsalo Annes e Álvaro Sanches Castellão morador em Sevílha na Collacão de Santa Maria Maior em Tibreis, e Affonso Annes, morador no dito Mosteiro. E outro si eu dita testemunha (sic) que isto assiney com meu sinal raso que tal he, a 23 do mez de setembro de 1408 annos. — Affonso Guterres.»
Nos primeiros vinte anos, os frades trataram de alargar o edifício, primitivo, e fizeram uma igreja, en­fermaria e claustro; concorrendo para esta última obra, D. João I, com, além de valiosas quantias, doze colunas de mármore que mandou trazer de Ceuta quando ornou aquela praça em 1415.
O autor de Nobiliarchia Portuguesa, falando (a pág. 94 do seu livro) às uma ermida próxima de Barcelos diz:
«No altar d'esta ermida essá uma meza de pedra, na qual comia Cala-bem-çala, senhor de Ceita, e D. Affonso, conde de Barcellos, primeiro duque de Bragança, quando se achou na tomada d'aquella cidade com el-rei D. João I, seu pae, a fez tirar dos seus paços e trazer para aquelle logar para tropheu da victoria, e occasião em que se viu com os mouros em grande aperto. Também trouxe então doze columnas de jaspe, que poz nos seus paços de Barcellos, de que hoje não ha noticia. Na mesma occasião, e do mesmo logar, trouxe el-rei outras doze columnas, que deu ao Mosteiro de Santa Catharina da Carnota, sobre as quaes se armaram aos arcos do claustro».
Ao tempo da extinção das ordens monásticas, em 1834, estas colunas, com outras de pedra trivial, ainda sustentavam os arcos do pavimento térreo do claustro; mas já bastante danificadas pelo tempo. Hoje as séis que estavam mais bem conservadas estão no jazigo da Casa Carnota, que esteve primeiro no Cemiterio dos Cadafaes, e hoje é o jazigo n.º 4120 no cruzamento das ruas 9 e 28, no 1.° Cemitério de Lisboa, no Alto de S. João; quatro estão no centro do recinto que corresponde ao an­tigo claustro, e as outras duas estão quebradas. (2)
Das colunas de Ceuta que foram para os Paços de Barcelos, não há hoje notícia. A mesa de pedra existe ainda (em 1913) na ermida de Nossa Senhora da Franqueira, apoiada em três colunazinhas. Sendo confron­tado um fragmento de urna das colunas da Carnota com a referida mesa e seus suportes achou-se que a pedra era perfeitamente igual, segundo carta do Exmo. Dr. Bal­tazar Osório, que é Vogal da Comissão que trata da Comemoração do Centenário da tomada de Ceuta. (3)
Sobre a historia desta casa muito se podia dizer, porque na Crónica da Ordem, intitulada Escola Penitencia, Caminho da Perfeição, etc., escrita por Fr. Martinho do Amor de Deus, em 1740, não faltam elementos, mas, infelizmente, por menos cuidado que houvesse, quer na revisão das provas, quer no copiar dos documentos, há uma confusão medonha de datas, junto a uma completa ausência de método.
A primeira nota histórica que havia no cartório da Casa, e vem reproduzida na Crónica, tem a data de 24 de Dezembro de 1435, época em que Fr. Pedro do Quental era aqui Vigário. Falando da muita chuva que houve por aquele tempo, escreveu:
«Cahiu uma Riba de cima do monte traz a cosinha, com infinda pedraria ás horas da noite, que parecia quando caiu, que todo o mundo cahia, e nõ fez nas casas damno, porque Deos nõ quizo, e as arvores, e tudo vão a terra, e nõ passou do cano da agua, que vem do monte. Este anno foy tão grande o inverno, e continua­ção das chuvas por três mezes continuos, e mais, que cahirão infindas casas por todas estas terras, e o campo de Santarém abbondou mais de um mez que esteve cheo, que andavam barcos por montes, e por cima das casas e se perdeo muito gado e pão, e cahiram muitos moinhos. E o moinho do Refugidos, nosso visinho, que então se fazia de novo, todo o levou a agua a sob este Mosteiro. Dizião os vivos que nunca tal inverno virão n'esta terra, com mingua do trigo em Alemquer, e por toda a parte era muita fome, e muita prestinencia, que havia muitos annos que durava, e erão frayres que então aqui moravão, Frei Pedro do Quental, Frei João de Castinho, que foi vigário quartanario, e por isso deixou o officio, Frei Braz de Carvalho, sacerdote, Frei Diogo Navarro, corista, Frei Diogo de Moirão, leigo, Frei Christovão do Campo, leigo, e Frei Gregorio da Fronteira, leigo, que veio da ilha da Madeira, que de tudo derõ fé».
A esta terrível invernada seguiu-se a fome, em 1438, fome que não só diminuiu os recursos dos religiosos, enquanto durou, mas se fez sentir durante muitos anos. Depois; porque, embora fosse seguida, a partir de 1441, por anos de abundância, o povo tinha-se acostumado a talhar o pão da caridade exiguamente, e assim conti­nuou a fazer quando a desculpa para tal deixou de existir.
Contudo sobejava sempre alguma coisa do que era absolutamente preciso para o sustento; e diversas obras foram feitas para o aumento e embelezamento da casa. Assim rezava o cartório:
«Sendo Vigário Frei Henrique de Leiria, no anno de 1450, se pintou o retabolo do altar mór, o qual pintou Francisco Annes de Leiria, filho de João Affonso. Levou de o pintar, doze mil réis, brancos. O dito pintor pintou na parede o Crucifixo da igreja, e a Custodia do Corpo de Deos, e S. Gregorio, e o Senhor com os seus Martyrios, e o Crucifipo do Refeitório. E o carpinteiro que fez o retabolo chamava-se Mestre Simão, o qual mandou fazer Frey Lourenço d'Azambuja, sendo Vigário; e o dito Mestre fez o Coro do dito Oratório e a Custodia do Sacramento. Derão-lhe um moyo de trigo e dous mil réis, e de comer a elle e a Cornelio, seu mancebo freixeiro.»
O primeiro muro que fechava a cerca foi feito em 1473, e ficava uns dez metros mais para dentro do que o actual, de ambos os lados. Ainda há vestígios dele, do lado dos Refugidos, perto da Paciência; e, do lado oposto, na mata, por baixo da escada da Ascensão. Foi no Capitulo da Ordem, celebrado no convento de Alenquer, em 1468, que se assentou em fazer-se tão neces­sária obra, e se autorizou, para o custeio dela e a compra de dois Breviários para o coro, a venda de uma cruz de prata que havia no convento, do peso de sete marcos, e de outra que estava quebrada.
A vedação deve ter sido apenas dos lados e pelo fundo; porque, como naquele tempo o limite da propriedade de Odivelas era a rocha, cortada a pique, que ainda se vê na mata, o muro deixava de ser necessário para aquela parte.
Em seguida vem a notícia de outra fome, em 1485, acompanhada, como geralmente era, da peste, consequên­cia fatal da má alimentação. O alqueire de trigo que, antes dela, se comprava em Alenquer por quinze ou o máximo vinte reis, subiu a noventa e nove reis.
«Era, n'este tempo, muita fome» diz o Cronista, «e muita pestilência, e morria muita gente assim com a fome como com a pestilência».
No ano seguinte, de 1486, havendo dissenções entre alguns frades da Ordem Franciscana, querendo uns viver com mais austeridade do que a outros convinha, cele­brou-se um Capitulo em Alenquer para resolver a ques­tão, o que se fez nomeando-se esta casa da Carnota, com algumas outras, para residência dos frades que quisessem seguir a regra mais rigorosa do glorioso Santo An­tónio.
Novas obras se fizeram no ano de 1511, no vigariado de Fr. Pedro de Santa Catarina. Foram estas: «um lavatório junto da fonte da Samaritana, porque não havia em que lavar senão duas pias de pedra que rompiam a roupa. Fez mais uma chaminé, junto da porta da cosinha, para se enxugar os frades hospedes quando viessem molhados. E sendo Vigário Frey Jaymes, frade leigo, aranjuez de nação, se fez o relógio de ferro com suas rodas e campana, o qual fez Frey João da Comenda, frade leigo, portuguez».
Como adiante hei de mostrar, a igreja de que se pin­tou o retábulo em 1450 não era a actual, mas outra que devia ser muito mais pequena, pois se lhe dá o nome de Oratório. O relógio de ferro, se existia em 1834, foi tirado depois; porque em 1860 existiam dele somente os pesos, que eram de pedra, e parte dos azulejos do mos­trador, o qual ficava do lado do campanário, por cima da porta da sacristia, e tem os algarismos _ _ 1 2, não sendo possível fixar-se qual o numero correspondente ao século que falta.
Por aquele tempo parece ter havido um grande tre­mor de terra (porventura o de 1531), que arruinou bas­tante o convento, «ficando só as paredes abertas para testemunha do edifício porque tudo o mais estava por terra, rendido, ao golpe de tão grande estrago».
Os religiosos ficaram sem abrigo e sem terem quem lhes valesse; porque para qualquer parte que voltassem os olhos, não viam senão companheiros no infortúnio.
«Era neste tempo Vigário Frey Francisco Benavilla, frade leigo, que nõ era de missa, e muito bom homem. Elle, com trabalho, andou pedindo esmolas, e deu principio a fazer hum convento novo, e acabou; e entrou apóz elle Frey Álvaro de Santa Cruz, que também trabalhou muito, e nõ farião nada se no fóra Frey Vasco Corrêa, Guardião do convento de Lisboa, em Xabregas, pela bolsa de seu irmão António Corrêa Baharem, e também pediu esmolas a gente rica e fidalgos da cidade; mas António Corrêa se pode dizer que deu tudo para acabar o convento, e por esta causa, e por outras grandes esmolas que fazia, e sua muita devoção, pêlos annos adiante se lhe deu o padroado d'este Convento. E d'esta vez se fez a capella mór, côro, capitulo, enfermaria, dormitório, affirma Frey Álvaro da Cruz, no cartório antigo debaixo do seu signal».
Em 1546, outra vez a fome, com uma «falta de viveres, que andavão os homens em termos de se comerem huns aos outros, subindo o trigo, ao preço de cruzado, cousa nunca vista».
Felizmente a duração foi pequena. No anuo seguinte as doenças pararam, os ares purificaram-se, e foi tal a abundância, que por dez tostões se vendia um moio de trigo no Alentejo, e do mais estremado, no Terreiro, a trinta réis o alqueire.
Durante toda a primeira metade do século XVI, a casa da Carnota seguiu a regra do Taumaturgo Lisbonense, embora pertencesse á Ordem de S. Francisco. Mas a separação desta e das outras casas, ordenada em 1486, não fez cessar as divergências entre os irmãos da Ordem, como se esperava, antes as avolumou; porque deu lugar a disputas sobre preferências, querendo os franciscanos ter a primazia pela antiguidade da origem, e os antoninos pela sua extrema virtude e austeridade. Em 1565 os conventos antoninos formaram-se em Custodia, que era um agrupamento de conventos, sujeitos a uma Província, mas governados por prelados seus.
Não satisfeitos, porem, ainda assim, os antoninos alcançaram da Santa Sé, um breve, datado de 8 de Agosto de 1568, pelo qual se se constituiu uma Província nova, com a denominação de Província de Santo António dos Capuchos, e dela ficou a casa da Carnota formando parte, até á dissolução das ordens monásticas em 1834.
Por este tempo os frades tiveram ensejo de alargar os seus limites, e aproveitaram-no. Uns vizinhos dos Refugidos, João Gonçalves e sua mulher Maria Gomes, por escritura de doação, feita em 1546, deram-lhe um pe­daço de terreno, fora da primitiva cerca; e Pêro Sobrinho de Mesquita lhes fez doação de outro pedaço, em con­sequência de que puderam fazer o muro actual, e levá-lo até alem da linha do rochedo, ficando-lhes assim, dentro do recinto as nascentes que davam água para a casa, e podendo tornar a floresta mais ampla e pitoresca.
Foi esta a época em que mais desenvolvimento teve o embelezamento da propriedade.
Achava-se aqui refugiado, em 1557, D. Manuel de Portugal, membro da bem fidalga casa daquele apelido. No seu serviço tinha um flamengo, cujo nome o Cronista não indagou, mas que diz ser tão perito, na arte da escultura, que dava a entender na perfeição, que dele tinha aprendido Phidias; no que parece haver algum tanto de exagero.
Este homem dedicou-se á fabricação de imagens de barro cozido que se colocaram em capelinhas espalha­das pela mata. A primeira que acabou foi a de Cristo no Sepulcro, que ficou em uma capela metida debaixo do enorme penedo ao lado do qual se sobe pela escada da Ascensão. Depois lavrou uma imagem de S. Francisco recebendo as Chagas, que se diz ter sido um primor de viveza.
Em 1563 temos notícia autêntica de outras obras feitas e relatadas em um documento que estava arquivado no cartório da casa. No referido ano, pouco mais ou menos, foi eleito Guardião Fr. Francisco de Santa Águeda, religioso de grande engenho e habilidade, o que sendo visto pelo Prelado Maior, lhe mandou que cons­truísse as ermidas, os Santos das quais ele fez por sua mão e pintou; e por seu risco e ordem se fizeram as mais obras, de que deixou a seguinte memória, escrita de seu próprio punho. Diz ele:
«Não era a minha tenção fazer memória do que fiz n’esta casa sendo Guardião della; porque fiz o que sempre obrey em as mais casas, sendo súbdito; mas por rogos dos Religiosos, aqui moradores faço esta lem­brança, para que se sayba a muita devoção que se tinha a este Convento, e Deos seja louvado. Em oito annos que nesta casa morey, seis e meyo Guardião e hum e meyo súbdito, em todos elles houve sempre obras. Nas mais das semanas andavão trabalhando quinze e vinte homens. A todos se dava de comer e meyo jornal. Aos officiaes a tostão e quatro vinténs; e aos trabalhadores a dous vinténs. E nunca Deos faltou com o provimento assim para os religiosos como para os officiaes.
«Na primeira vez que fuy Guardião, se fízerão as obras seguintes: os pórticos da entrada, e o muro da clausura mais junto da casa; porque as mulheres chegavão até ella. Fizerão-se as ermidas da Ceia até á Ascensão, com todos os sucalcos e escadas, canos, tanques, e vallas para se tomarem as aguas. Fez se, na rua de cima, a ermida da Magdalena e a de S. António, e se alargou a rua, por ser muito estreita; e também se fez parte da igreja, que a velha cahio nesse tempo. Tudo o sobredito se fez com esmolas de pessoas devotadas.
«Sendo provincial o irmão Frey Simão da Natividade, eleito segunda vez, me fizerão segunda vez Guardião desta Casa de Santa Catharina da Carnota. As obras que se fizerão neste tempo forão as seguintes: — A portaria, sucalcos e escadas para a horta, a fonte da Samaritana, e a esquadra dos Fariseos com tudo o que era necessário para ella.
«Fez-se a cosinha, alargando-se, fez-se a procuração com a casa de dentro que serve de despejos, abrindo-se por baixo da terra. Forrou-se a Portaria e a Hospedaria, e emmadeirou-se de novo quasi toda a casa. Assentou-se o retabulo do altar mór, o qual fez um irmão ao dito Guardião, frade leigo, que depois fez também os dois collateraes e os santos d’elles. E também fez o Christo Crucificado, Nossa Senhora e S. João; que estão sobre o arco cruzeiro, que todas são de madeira, excepto as do Desposorio de Santa Catharina, que são de barro. Também concertou grande parte dos muros, porque em seu tempo se arruinaram. Também fez a calçada toda que vae por junto do muro para o Refugidos».

O bom frade acaba o seu relatório com estas pala­vras: «Peço perdão a todos os religiosos, assim presentes como futuros, e que não se queixem de mim em fazer as ermidas, senão dos Provincíaes que me mandaram».
Pena foi que, assim como ele as fez, e os seus supe­riores o encarregarem das obras, não houvesse depois prelados e frades que cuidassem da conservação delas. A posteridade não os censuraria, antes lhes teceria lou­vores.
O Cronista da Ordem fixa a data do Relatório su­pra em 1653; mas as palavras que sublinhei mostram que aquele ano é erro, sendo provável ter havido trans­posição de algarismos, devendo ser 1563.
O Crucifixo e as imagens que estavam, aquele por cima do arco cruzeiro, e estas uma de cada lado, foram apelados no tempo que o ex-Convento esteve na posse do Sr. de Kantzow, afim do Crucifixo poder ser emprestado para os Ofícios da Semana Santa na vila do Sobral de Monte Agraço. Nunca de lá voltou; e ainda se acha na igreja de Santa Aurélia, da mesma vila, onde é objecto de grande devoção dos povos. Na cruz está gravada a seguinte inscrição:

LEIGO
FES. — F. JORGE—D — BRA
GA ESTAS IMAGES
ERETABOLOS
1564


É, pois, claro que todas as obras mencionadas foram feitas entre 1550 e 1570; que o escultor, Fr. Jorge de Braga, frade leigo, era irmão do Guardião Fr. Francisco de Santa Águeda; e que ambos tinham grande habilidade para moldar e talhar imagens em barro e madeira.
Em 1571 teve lugar neste Convento uma ocorrência que, embora pareça trivial, carece de ser mencionada. Naquele ano, no primeiro dia do mês de Julho, estando ai o muito reverendo Domingos Simões, Capelão do Cardeal Infante D. Henrique, e Secretário do Conselho Geral da Inquisição, juntamente com o Notário da mesma Santa Inquisição, Pedro Álvares, perante eles e as tes­temunhas, Frei Francisco de Santa Ana e Frei Filipe de São Josué, moradores no Convento, compareceu Helena Jorge, viúva de Sebastião de Macedo, de Alenquer, e foi inquirida como testemunha de acusação contra o Cronista mor do Reino e erudito escritor, Damião de Goes, então preso nos cárceres da Inquisição, tio do falecido marido dela. O seu depoimento encontra-se nos Inédi­tos Goesianos, Vol. II, pág. 27. (4)
Segundo assentos no cartório da casa constava que, em 1578, «se fizeram as ermidas do Monte Sinay, e a de Santo António, e a arca da Ressurreição, e o Monte Calvario, e outras bemfeitorias que fizeram esta casa mais devota. As ermidas de S. Jeronymo e de Santa Maria Magdalena, e a de Santo António que está no seu altar, e a de S. Pedro na Cova, fez Frei Francisco dos Santos, natural de Vizeu».
No mesmo ano, por já estarem de posse do terreno superior do rochedo, fizeram a mina que nele há. Diz o Cronista: «E por ser esta agua mui delgada, se apartou da outra fonte que vinha de cima, e d'ahi por deante, em o mez de Março, a recolhiam em uma cisterna para beberem d'ella, por ser mais delgada».
Como há pouco se viu pêlos assentos da casa, a An­tónio Corrêa Baharem, foi dado o padroado da capela-mor em agradecimento da sua muita generosidade na reedificação da casa; e quando faleceu, em 1556, foi aí enterrado, lavrando-se o seu epitáfio na grande campa que ainda existe.
O padroado importava a obrigação de reparar a capela-mor todas as vezes, que ficasse em estado de preci­sar disso. Assim aconteceu em 1603, quando o bisneto daquele grande capitão, outro António Corrêa de Baharem, dispendeu avultada quantia na restauração da capela, e mandou ali colocar o escudo das suas armas.
Além de tudo isso, fez doação perpetua de uma arroba de vaca cada semana, para sustento dos frades, cem esmola arbitraria para os dias de peixe, Adventos e Quaresma.
Em 1622 os frades obtiveram do Papa Gregório XV um Breve para todos os fieis que, confessando as suas culpas e comungando, visitassem a igreja e altar de Santa Catarina no seu dia, sem limitar-lhe as horas, com Indulgência Plenária e remissão de todos os seus pecados.
Quatro anos depois, deu-se nesta casa um facto único e notável na sua historia, qual foi a impressão de um livro, de formato pequeno, verdade é, mas de 784 paginas. Foi a Obrigação do Frade Menor, composta por Frei Dâmaso da Presentação que, em 1626, era pregador e Guardião neste convento. O tipógrafo que assim se obrigou a acarretar prelo e tipo para estes mon­tes, recebendo talvez, apenas o sustento em paga do seu trabalho, foi António Alvares, e acabou a sua tarefa em 1627. Ficou obra razoavelmente perfeita; e tanto que um exemplar, foi mandado para a Exposição de Paris, de 1867, como amostra da perfeição com que se imprimia naquela época. Outro exemplar voltou á casa em 1887, quase no estado em que a tinha deixado, 260 anos antes, e lá se conserva depositado. (5)
O Breve de 1622 foi confirmado em 1628, por Urbano VIII, que lhe juntou outro, privilegiando os altares, para que sendo a missa de sacerdote e religioso morador nesta casa, se tirasse uma alma do Purgatório todas as segundas feiras do ano, sendo tantas as almas quantos os Sacrifícios, estendendo-se ao dia de Todos os Santos e seu Oitavario; com a limitação, porem, que devia haver, nos moradores desta comunidade, o numero de dez sa­cerdotes que celebrassem.
Por outro Breve do mesmo Papa Urbano, concedido em 1638, privilegiou-se o altar de Santo António, ainda mais simplesmente, pois dizendo-se missa nele em dia de Finados e todo o seu Oitavario, e nas segundas feiras de todo o ano, se tirava uma alma do Purgatório, sem a limitação dos dez sacerdotes, bastando que o cele­brante fosse morador na casa. Este Breve foi impetrado por Henrique Henriques, para a capela instituída por seu sogro, Arthur Henriques Sacoto.
Em 1653, alcançou-se de Inocêncio X um expresso, em forma de Breve, para o culto de relíquias de S. Se­bastião, S. Félix, S. Maximiano, S. Gregório, S. Aurélio, S. Faustino, Santa Margarida, e de outros muitos Santos Mártires, que se colocaram na capela mor, aonde algu­mas existem ainda.
No fim do terceiro quartel do século XVII, tendo-se extinguido a linha da varonia de António Corrêa de Baharem, os novos possuidores de sua casa descuraram do pagamento do encargo pio do padroado, e os atrasados acumularam-se até fazerem um total difícil para eles de solver.
Em 1679 o Príncipe Regente, D. Pedro II, movido por motivos religiosos ou políticos, ordenou aos frades que procurassem pôr o padroado livre, porque ele seria padroeiro deste e de todos os mais conventos que na Província o não tivessem. Os sucessores de António Cor­rêa foram intimados, judicialmente, para pagar ou de­sistir do padroado, e como optaram pela desistência, o príncipe declarou-se Padroeiro do convento, ao qual fez mercê, a 21 de Abril do referido ano, de um alvará de sessenta mil réis de Ordinária, pagos pela Casa do In­fantado, visitando depois os religiosos, a quem tratava com particular amor. No mesmo ano de 1679, sendo Guardião Fr. Jerónimo da Conceição, as Armas Reais foram colocadas com toda a solenidade sobre o arco da capela-mor e o da Portaria, aonde ainda se vêem. Provavelmente na mesma ocasião as ossadas dos jazigos dos padroeiros foram passadas para outro, no claustro, na campa do qual se reproduziu o mesmo epitáfio que foi picado na campa da capela-mor, e o escudo das armas dos Corrêas Baharens tirado.
Onze anos depois, a 7 de Julho de 1690, a herdeira da casa dos Baharens, D. Paula de Alcáçova, mulher de António de Basto Pereira, faleceu, e, apesar de ter desis­tido do padroado, trouxeram seu corpo a enterrar no convento. Por convenção, ficou em depósito no carneiro por baixo do altar de Santo António.
Depois da morte de D. Pedro II, o Infante D. Fran­cisco mandou continuar o pagamento da anuidade ao convento; e veio disfarçado visitar a casa. Agradado do que viu, denunciou-se aos frades como seu Padroeiro; e mandou dar-lhes uma esmola de madeiras, do parque de Sernache do Bom Jardim, para as suas obras.
Pessoa que visitou este convento entre 1735 e 1740 deixou escrito que tinha, então, todas as oficinas ne­cessárias, e cómodo para recolher vinte e cinco e mais religiosos, em celas com bem regulados dormitórios. Quinze anos depois, o grande terramoto de 1755 reduziu tudo a um montão de ruínas. O ressalto que há na parede da casa, do lado dos Refugidos, indica bem que, daí para cima, tudo quanto eram celas e dormitórios abateu.
Depois de reedificado, pouco ou nada se sabe da his­toria do convento até á fugida dos frades, e a extinção das ordens monásticas, em 1834, quando passou a fazer parte dos próprios nacionais, e foi arrendado, de ano para ano, ao capitão Francisco Solano de Mendonça e outros, pela insignificante renda anual de 14$400 réis. Durante este tempo, os povos limítrofes aproveitaram-se do estado de abandono em que o prédio estava, para rou­barem tudo quanto lhes apetecia, e que fosse de fácil remoção. Na época da extinção a lotação da casa era de 18 frades.
Tendo sido anunciado para a venda, o convento e a cerca foram vendidos, em 17 de Fevereiro de 1845, ao então ministro da Suécia, Carlos Adolfo de Kantzow, depois feito Barão de S. Jorge de Kantzow, pelo preço de 2073$500 réis, na forma da lei, isto é 207$300 réis em metal, 626$200 em papel moeda, e 1:240$000 réis em títulos denominados azuis.
Aquele cavalheiro tornou, a vender tudo, por escriptura de 5 de Fevereiro de 1852, lavrada na nota do tabelião de Lisboa, João Baptista Scola, a John Smith Athelstane, depois feito Conde da Carnota, sendo o preço do imobiliário de 800$000 réis, em metal, mas entrando na venda, por convenção particular, mobiliários no valor de 250$000 réis.
Durante o tempo que a propriedade esteve em poder do Conde da Carnota, o edifício e a cerca sofreram uma completa restauração e alteração, sendo quase todas as obras de madeira feitas por carpinteiros ingleses que mandou vir da sua pátria. Até ao tempo do seu falecimento, tinha gasto nestas obras mais de dezoito contos de réis.
Pelo falecimento do Conde da Carnota, esta quinta, com tudo o mais que possuía em Portugal, passou ao poder do actual proprietário, o autor deste insignifi­cante livro, que, com igual amor e dedicação, embora com menores recursos e menos perícia, tem diligenciado conservá-la e embelezá-la.
Nesta grata tarefa foi, durante os anos que decor­reram de 1887 até 1903, auxiliado, muito proficuamente, pela Exma. Senhora D. Joanna Ignez Maguire Henriques, sua segunda esposa, que nasceu em Inglaterra a 14 de fevereiro de 1844 e falleceu a 28 de Novembro de 1903, em Lisboa, aonde jaz no jazigo da casa, no Cemitério do Alto de S. João. (6)
Em diversas épocas, esta casa foi enobrecida pela residência nela de alguns frades dos mais notáveis da Ordem pelas suas virtudes e letras, entre os quais se pôde mencionar:
Fr. Diogo de Árias — o fundador deste convento, e dos de Santa Maria do Mosteiro, Nossa Senhora da Ínsua, e Santo António da Castanheira. Este santo homem, espanhol de nascimento, morreu aqui, em 1420, e foi enterrado perto da porta da primeira igreja, em sitio hoje ignorado.
Fr. Garcia de Montanos — também espanhol, e um dos companheiros de Diogo Árias. Foi o primeiro guardião deste convento. Era muito estimado pela sua devoção e caridade.
Fr. Affonso Sacco outro companheiro de Diogo Árias, foi vigário deste convento, e guardião de alguns outros, incluindo o de S. Francisco de Alenquer. Deste religioso diz o padre Povoa que «comportava-se bem em tudo, sempre obedecendo ás regras da ordem, e muito penitente. Trajava um habito tão estreito que parecia um sacco, donde lhe veiu o appellido. As suas maneiras no confessionário eram tão suaves que el-rei D. Duarte veiu «aiqui bastantes vezes confessar-se a elle, e não podendo persuadil-o a fixar sua residência na corte, o deixou fi­car com o titulo de seu confessor. Morreu em setembro de 1437».
Fr. Francisco do Monte Alverne — conhecido no secular por Francisco Corrêa Baharem, homem de grande ta­lento, formado em Coimbra, membro do Santo Ofício e deputado daquele tribunal em Évora, aqui professou e passou alguns anos da vida. Sendo nomeado para varias guardanias, saiu da Carnota, e ignoro aonde faleceu. O seu nome indica que era da família da quinta da Con­dessa.
Ruperto — Em 1525 tomou aqui residência um pere­grino chamado Ruperto, húngaro de nação. A sua pre­sença na cerca foi descoberta pela forma seguinte: Em Julho daquele ano, Fr. Simão do Cercal, noviço, passeando pelo bosque, no sítio que é hoje o fundo da escada da Ascensão, encontrou entre as árvores um homem des­conhecido. Dando parte ao guardião, Fr. Theodosio, este mandou procurar pela cerca; porém o homem nunca mais foi visto, sendo apenas encontrado, na rocha que lhe servia de leito, um livro intitulado VITAE PATREM, algumas cruzes de pau e a ferramenta com que as talhava, e uma carta do bispo de Nicopolis, dando a saber que o porta­dor era soldado, e natural de S. Filipe, na Hungria. Depois de pelejar contra os mouros alguns anos, resolveu afastar-se do mundo, e tratou de procurar um sitio para levar a efeito esta tenção. Foi á Terra Santa, daí a pé, e ajudado pelas esmolas que lhe davam, passou para San­tiago, na Galiza, e de lá, continuado viagem, veio a este sitio, aonde parecia ter residido algum tempo oculto.
Fr. António de Santa Maria — No dia de Nossa Se­nhora da Conceição, 1588, morreu aqui Fr. António de Santa Maria, natural de Viseu, que tomou o hábito aos 20 anos e morreu aos 70. Foi secretário do Padre Fran­cisco Noé, ultimo ministro de ambas as Províncias, e depois de ser eleito por diversas vezes prelado da Ordem, foi, em 1580, eleito Provincial. Foi enterrado á porta do Capitulo.
Tendo sido historiado na generalidade, esta vetusta casa, vou agora tentar uma leve descrição das suas di­versas partes.
Começando no portão que é a entrada principal, na actualidade, convém dizer-se que tanto ele como as casas de habitação ao pé foram obra do Conde de Carnota. A entrada, no tempo dos frades, era pela primeira carreira de arcos, entre a qual e o actual portão, o terreno estava franco ao público. Na primitiva aqueles arcos deviam ter sido abertos e, portanto, o pátio também estava fran­co; mas, em 1860, os dois arcos dos lados estavam tapa­dos com pedra e cal, e no do meio havia um portão de duas valentes meias portas, nas quais estavam pintados os algarismos — 1669 — que, provavelmente, represen­tavam o ano em que foi colocado, sendo então certo que a madeira de cipreste de que as portas eram feitas tinha sofrido, ao ar livre, dois séculos de calor, frio e humi­dade, unicamente com a primeira pintura, sem maior de­terioração.
Uma dessas meias portas está ainda em serviço no lagar de azeite da quinta do Amaral.
Sobre os três arcos desta carreira, há igual número de nichos. No do meio havia figuras representando a degolação de Santa Catarina; e nos dos lados duas está­tuas de frades. A cada extremidade a figura de um anjo. Por fora, entre os arcos, e entre estes e as paredes laterais, há quadros de azulejos com as poesias seguintes, na ordem em que vão, começando do lado da mata.

Entra devoto romeiro
Mas antes de entrar repara
Na sanctidade mas rara
De Pedro que foi primeiro
O retrato verdadeiro
Desse Serafim chagado:
Nelle veras copiado
O rigor, a penitencia,
Santítidade, abstinência,
De que seo Pai foi dotado.
________________

Olha, contempla e repara,
Neste Leão, e Cordeiro
Se o Tyranno he carniceiro,
Catharina he cordeiro na Ara:
Quando a tyrannia rara
Lhe corta a cabeça fora
Então a fez ser credora
De três coroas prevenidas
Que o Ceo lhe offerece luzidas,
Por Virgem, Martyr e Doutora.

________________

Já que reparas curioso,
Vê neste cruel delírio
Como Catharina o Martyrio
Soffre com peito animoso:
Mas se o golpe rigoroso
Desse Tyranno homicida
Morte lhe deo atrevida
Nella lhe segura a palma;
Pois pelo Martyrio a alma
Foi gosar a eterna vida.

________________

Este que vês retratado
Da sanctidade portento
He quem foi do Sacramento
Devoto mais sublimado
He quem depois d'acabado
O curso da mortal vida
No mausoléo presentida
Da Hóstia a elevaçam
Tributou em venereçam
A Christo a honra devida.


Passados os arcos penetra-se no pátio, que na época de florescer das belas olaias que o ornam dos lados, fica atapetado daquelas lindas flores. Uma porta para a es­querda, e outra para a direita, dão ingresso para a mata e para a parte inferior da quinta, respectivamente. São am­bas modernas; porque a estrada antiga para a mata fi­cava entre a segunda carreira de arcos e a escada por onde se desce para a igreja; — e as únicas entradas para a parte inferior da cerca eram pela portaria ou pela igreja.
No pátio, a meia distância entre as duas carreiras de arcos, havia no muro do lado da mata, uma fonte de mármore (7), que hoje está no claustro, por onde corria agua que vinha de cima enquanto a mina a dava. Sobre a pia, em um nicho oval, há uma imagem de S. João Bap­tista, hoje quase de todo destruída pela acção do tempo (8); e dos lados, nos azulejos, liam-se duas poesias em louvor do Santo que começavam:

Respirar um ar campestre,
Apartado dos mortaes,
Vestir peles de animaes,
Comer hervas, mel sylvestre,
Com sustento mais que agreste
Ver da morte o rosto perto,
Descalço e apenas coberto,
Ao rigor do frio e neve
Eis o viver que teve
O Baptista no Jordão.

Em seguida vem a segunda carreira de arcos, entre os quais há dois nichos com figuras de tamanho natural representando, a da esquerda S. Francisco, tendo o mundo debaixo dos pés, e acorrentado a este a Ira e o Luxo; a da direita Santo António com o Menino sobre o livro. Por cima do arco do meio, em um pequeno nicho, está Nossa Senhora da Conceição. (9)
No pedestal da imagem de S. Francisco há azulejos com ás seguintes estrofes (10):

Em o lado do Redemtor
Tem Francisco o seu lugar
Lá no Céo por singular,
Em prémio do seu amor;
Delle cobrou o valor
Com que venceo alentado
O que se vê destroçado
A seos pés com tanta gloria,
Que tem segura a vitoria
Quem traz a Jezus no lado

Por baixo da imagem de Nossa Senhora da Conceição, lê-se nos azulejos:

Obriguei-me a proteger
De Francisco a Religião,
Pois a minha Conceição
Se empenha em defender.

Aos pés do fundador da Ordem dos Capuchos os azu­lejos dizem:

Oh! com quanta suspensão
Tão sacro, bosque admiro,
Se à António neste retiro
O Ceo nesta solidão
Nelle louvores se dão
A Deos e he desprezada
Do mundo a gloria, e nada
Vale sagaz o demónio,
Porque guarda Santo António
Com Jezus a sua entrada


Para a direita destes arcos está o alpendre da que foi, em tempo, a sumptuosíssima ermida de Nossa Se­nhora da Graça, hoje transformada em celeiro; porque, para casa particular, bastava um edifício para o culto, e a igreja conventual é que apresentava mais conveniên­cia para a conservação, por ser maior e mais bem conser­vada, e por ter comunicação com a casa de residência.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

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1:25 da tarde  

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