Depois de atenta leitura e leve estudo sobre o trabalho do meu trisavô Guilherme João Carlos Henriques achei por bem referenciá-lo numa enciclopédia virtual aqui na Internet, a Wikipédia. Mas à medida que ia levantando informarção para a colocar on-line, multiplicavam-se os interesses específicos e o número de nomes e referências que apareciam era cada vez maior, interligando-se numa interminável teia de panorama histórico que me prendeu desde o início até aqui, o que penso ser o primeiro passo no encalço do trabalho deste meu antepassado.

Em paralelo tenho vindo a desenvolver uma também iniciática investigação genealógica com o objectivo de reconstruir a árvore da famí­lia. Como nestes campos os resultados de busca se tornam tão dispersos como ricos, e como julgo como primeiro bem necessário a partilha de conhecimento, coloco todo o trabalho reunido que considero relevante em domí­nio público julgando com isso oferecer, através do meu lazer, alguma informação a quem por ela se interesse. Para esta 5.ª edição não oficial do trabalho de investigação sobre a Quinta da Carnota, transcrevi os textos referentes para o computador, corrigindo-os, adaptando-os e juntando-lhes toda a informação gráfica contemporãnea e antiga que já tinha da pesquisa genealógica. Sabendo que depois da sua aquisição pelo Conde de Carnota, a Quinta passou a ser uma casa de famí­lia que, embora já separadas, casa e família ainda hoje existem. Por isso e nas Épocas referentes ás edições da obra original apresento a versão aumentada de um novo valor, o valor histórico de uma famí­lia.
Guilherme Noronha

Junho de 2006

Uma das mais lindas propriedades do concelho e das mais antigas, com a vantagem de se achar em razoável estado de conservação, é a Quinta da Carnota, á beira da estrada dos Cadafaes a Santa Ana da Carnota, um pouco para diante do lugar dos Refugidos. O muro da cerca, do lado dos Cadafaes, é o limite a freguesia de Sto. Estêvão, naquela direcção.
A maior parte da cerca pertencia, antes de 1400, à Quinta da Carnota, hoje chamada do Amaral, que era do mosteiro de Odivelas. À mesma quinta pertencem ainda as três terras, mato e olival, que ficam para o Noroeste da cerca, e entre esta (ou a estrada) e o rio. Em 1408 foi separada do resto da quinta para se fundar nela um convento de frades menores, o que sucedeu pela seguinte forma:
Tinham já decorrido três quartos do século XIV, quando, na Igreja Católica, nasceu a célebre dissensão conhecida na história pelo título de o Grande Sisma Ocidental. Desde o princípio daquele século, a sede papal achava-se fixada em Avignon, na França; mas, no papado de Gregório XI (Pedro Rogério de Beaufort * França, Limoges, Castelo de Maumont 1331 + Roma 27.03.1378, 201.º PAPA, 7.º e último em Avignon), em 1376, a cadeira de S. Pedro tornou a localizar-se em Roma, donde, havia setenta e um anos, andava afugentada. Morreu Gregório e, com a eleição de Urbano VI (Bartolomeu Prignano * Itália, Nápoles c. 1318 + Roma 15.10.1389) para Papa, em 1378, surgiram divergências, em todo o orbe católico; porque parte dos cardeais, havendo a eleição dele por menos legal, ele­geram outro sucessor de Gregório XI na pessoa de Cle­mente VII (Roberto de Genève * Annecy 1342 + Avignon 16.09.1394), intitulado o Anti-Papa, que fixou a sua resi­dência em Avignon.
Durante quarenta e um anos andaram os católicos assim divididos, alguns países reconhecendo Urbano e outros Clemente. Os países que aceitaram este foram a França, Sabóia, Nápoles, e algumas partes da Espanha. Portugal e os países católicos restantes aderiram a Urbano.
Como é fácil de imaginar, mesmo nestes países as opiniões não eram unânimes. Em todos havia uma maio­ria e, portanto, uma minoria divergente; e, como sucede sempre, as minorias tiveram de sofrer, pelas suas opi­niões, os ódios e os maus-tratos das maiorias, tanto mais violentos pela questão ser religiosa.
A polémica envolveu todas as camadas sociais, e os conventos não ficaram isentos da desarmonia; seguindo dai opressões e vinganças da parte dos que mais avul­tavam, contra os que eram em menor número.
Assim aconteceu em uma casa franciscana da provín­cia de São Tiago, na Galiza, aonde o rancor religioso dos partidos se tornou tão insuportável que cinco dos irmãos mais afamados de virtude, e eminentes em teologia, saíram do convento, e procuraram abrigo em terras de Portugal. Foram eles:
. Fr. Diogo de Árias, asturiano, grande letrado e insigne pregador;
. Fr. Gonçalo Marinho, filho e herdeiro da esclarecida casa de Altamira e de muitas outras villas e castellos;
. Fr. Pedro de Alamancos;
. Fr. Francisco Sallo;
. Fr. Garcia de Montarias;
Apenas entrados em Portugal, começaram uma espé­cie de missão, chamando os povos á religião, e os Reli­giosos de profissão a mais estreita observância de seus votos e regra, de que, segundo parece, andavam, então, bastante afastados. Atraíram prosélitos em grande número, e conceberam a ideia de fundar novos conventos, dos quais o primeiro foi o albergue do Mosteiro, próximo de Valença do Minho.
Chegou a notícia destes santos varões á corte de D. João I (* Lisboa, São João da Praça (extinta) 11.04.1357 + Lisboa, Castelo 14.08.1433, 10.º Rei de Portugal r.1385-1433), nos últimos anos do século XIV; e, em 1400, el-rei os mandou chamar a Lisboa, para reformarem o convento de S. Francisco de Alenquer, que, sendo o mais antigo da Ordem, estava em tal estado de anarquia que se achava quase abandonado pelos conventuais. Em vir­tude da Ordem Régia, Fr. Diogo de Árias e mais três companheiros partiram para a capital – deixando Fr. Gon­çalo Marinho encarregado do ensino dos noviços já admi­tidos no Minho – munidos das precisas licenças, reforma­ram o convento de Alenquer; e achando boa disposição da parte d’El-Rei, resolveram tornar as terras em redor de Lisboa, o campo inicial da sua empresa do engrande­cimento da Ordem Seráfica em Portugal.
Começaram, fundando o convento de Santo António da Castanheira, e depois, procurando constantemente lugares adequados para novas casas, tiveram noticia do sítio do convento actual da Carnota, onde parece que nada havia senão uma ermidasinha, com uma imagem de Santa Catarina que tinha vindo da capela primitiva do con­vento daquele orago, ao pé de Alenquer, quando foi arruinada pelas cheias invernais do rio que passa pela vila.
Pediram licença a El-rei para fundar um convento; e ele, comprando ás freiras de Odivelas o terreno que se dizia ser preciso, pelo preço de oito mil libras, que cor­responde a 288$000 réis de dinheiro moderno (1914), com Ré­gia munificencia fez dele doação aos frades que, com as esmolas que obtiveram dos fieis, erigiram uma casa para onze frades e o guardião.
Ainda existe cópia da escritura da compra, que era do seguinte teor (1):
«Saíbão quantos este estromento virem que na era de mil quatrocentos e oito annos, vinte e trez dias do mez de Setembro, no Mosteiro de Odivellas, termo de Lisboa, na claustra do dito Mosteiro, estando no dito lugar D. Aldonça Pimentel, Abbadessa de dito Mosteiro e Constança Lourenço, Prioreza, e a Superioreza Beatriz Lourenço, e Guimar Annes e Leonor Affonso e Leonor Martins, Monjas professas do dito Mosteiro, e outras Monjas em convento do dito Mosteiro todas juntas chamadas por campa tangida, em presença de mim Affonso Guterres, Tabellião d'El-rey, segundo e costume em esta mesma; e testemunhas ao diante propostas, as ditas a Abbadessa e Prioreza e Superioreza e Monjas e Convento do dito Mosteiro disserão, que verdade era que El-rey D. João de Portugal, que Deos mantenha, lhe tomara a ellas, e ao dito mosteiro e convento hum lugar livre, onde está huma ermida, que he onde chamão Santa Catharina da Carnota, termo da Lamquer, para se fazer ahi um Oratório de frades de S. Francisco; e o dito Senhor Rey o mandára avaliar quanto valia para lhe pagar a ellas e ao dito mosteiro, o qual lugar fora avaliado em sete mil liberas desta moeda que hora corre por homens bons, e que o dito Senhor Rey lhe mandara dar oito mil libras para ellas haverem de comprar outra possessão melhor para o dito Mosteiro, as quaes oito mil liberas ellas cobrarão, e confessarão que receberão já do dito Senhor Rey por Gonçalo Anhes de Castello Branco, Escudeiro do Mestre de Aviz, que lhe os ditos dinheiros pagou presente mim testemunha, digo Tabellião, e testemunhas ao diante propostas. E porem as ditas Abbadessa e Prioreza e Superioreza e Monjas e Convento disserão que por quanto o dicto lugar, que lhes assi o dito Senhor comprara para o dito Oratório, era sem proveito nenhum, que nunca ellas nem o dito Mosteiro delle houvessem nem podessem haver, que por tanto renunciavam todo o direito que a elles haviam ellas e o dito Mosteiro e Convento, e o punhão em os frades da dita Ordem de S. Francisco para quem o dito lugar era, porque era proveito de Deos. E por quanto entendião que as ditas oito mil liberas havião de ser empregadas em outra possessão para o dito Mosteiro em melhor lugar, e mais proveitoso; e logo outro si frei Gonsalo, frade da dita ordem de S. Francisco, que presente estava, em nome dos ditos frades de S. Francisco pedio assi huma testemunha, e quantas mais houvesse. Testemunha, Affonso Pires, escudeiro, morador em Santarem na freguezia S. João, e o dito Gonsalo Annes e Álvaro Sanches Castellão morador em Sevílha na Collacão de Santa Maria Maior em Tibreis, e Affonso Annes, morador no dito Mosteiro. E outro si eu dita testemunha (sic) que isto assiney com meu sinal raso que tal he, a 23 do mez de setembro de 1408 annos. — Affonso Guterres.»
Nos primeiros vinte anos, os frades trataram de alargar o edifício, primitivo, e fizeram uma igreja, en­fermaria e claustro; concorrendo para esta última obra, D. João I, com, além de valiosas quantias, doze colunas de mármore que mandou trazer de Ceuta quando ornou aquela praça em 1415.
O autor de Nobiliarchia Portuguesa, falando (a pág. 94 do seu livro) às uma ermida próxima de Barcelos diz:
«No altar d'esta ermida essá uma meza de pedra, na qual comia Cala-bem-çala, senhor de Ceita, e D. Affonso, conde de Barcellos, primeiro duque de Bragança, quando se achou na tomada d'aquella cidade com el-rei D. João I, seu pae, a fez tirar dos seus paços e trazer para aquelle logar para tropheu da victoria, e occasião em que se viu com os mouros em grande aperto. Também trouxe então doze columnas de jaspe, que poz nos seus paços de Barcellos, de que hoje não ha noticia. Na mesma occasião, e do mesmo logar, trouxe el-rei outras doze columnas, que deu ao Mosteiro de Santa Catharina da Carnota, sobre as quaes se armaram aos arcos do claustro».
Ao tempo da extinção das ordens monásticas, em 1834, estas colunas, com outras de pedra trivial, ainda sustentavam os arcos do pavimento térreo do claustro; mas já bastante danificadas pelo tempo. Hoje as séis que estavam mais bem conservadas estão no jazigo da Casa Carnota, que esteve primeiro no Cemiterio dos Cadafaes, e hoje é o jazigo n.º 4120 no cruzamento das ruas 9 e 28, no 1.° Cemitério de Lisboa, no Alto de S. João; quatro estão no centro do recinto que corresponde ao an­tigo claustro, e as outras duas estão quebradas. (2)
Das colunas de Ceuta que foram para os Paços de Barcelos, não há hoje notícia. A mesa de pedra existe ainda (em 1913) na ermida de Nossa Senhora da Franqueira, apoiada em três colunazinhas. Sendo confron­tado um fragmento de urna das colunas da Carnota com a referida mesa e seus suportes achou-se que a pedra era perfeitamente igual, segundo carta do Exmo. Dr. Bal­tazar Osório, que é Vogal da Comissão que trata da Comemoração do Centenário da tomada de Ceuta. (3)
Sobre a historia desta casa muito se podia dizer, porque na Crónica da Ordem, intitulada Escola Penitencia, Caminho da Perfeição, etc., escrita por Fr. Martinho do Amor de Deus, em 1740, não faltam elementos, mas, infelizmente, por menos cuidado que houvesse, quer na revisão das provas, quer no copiar dos documentos, há uma confusão medonha de datas, junto a uma completa ausência de método.
A primeira nota histórica que havia no cartório da Casa, e vem reproduzida na Crónica, tem a data de 24 de Dezembro de 1435, época em que Fr. Pedro do Quental era aqui Vigário. Falando da muita chuva que houve por aquele tempo, escreveu:
«Cahiu uma Riba de cima do monte traz a cosinha, com infinda pedraria ás horas da noite, que parecia quando caiu, que todo o mundo cahia, e nõ fez nas casas damno, porque Deos nõ quizo, e as arvores, e tudo vão a terra, e nõ passou do cano da agua, que vem do monte. Este anno foy tão grande o inverno, e continua­ção das chuvas por três mezes continuos, e mais, que cahirão infindas casas por todas estas terras, e o campo de Santarém abbondou mais de um mez que esteve cheo, que andavam barcos por montes, e por cima das casas e se perdeo muito gado e pão, e cahiram muitos moinhos. E o moinho do Refugidos, nosso visinho, que então se fazia de novo, todo o levou a agua a sob este Mosteiro. Dizião os vivos que nunca tal inverno virão n'esta terra, com mingua do trigo em Alemquer, e por toda a parte era muita fome, e muita prestinencia, que havia muitos annos que durava, e erão frayres que então aqui moravão, Frei Pedro do Quental, Frei João de Castinho, que foi vigário quartanario, e por isso deixou o officio, Frei Braz de Carvalho, sacerdote, Frei Diogo Navarro, corista, Frei Diogo de Moirão, leigo, Frei Christovão do Campo, leigo, e Frei Gregorio da Fronteira, leigo, que veio da ilha da Madeira, que de tudo derõ fé».
A esta terrível invernada seguiu-se a fome, em 1438, fome que não só diminuiu os recursos dos religiosos, enquanto durou, mas se fez sentir durante muitos anos. Depois; porque, embora fosse seguida, a partir de 1441, por anos de abundância, o povo tinha-se acostumado a talhar o pão da caridade exiguamente, e assim conti­nuou a fazer quando a desculpa para tal deixou de existir.
Contudo sobejava sempre alguma coisa do que era absolutamente preciso para o sustento; e diversas obras foram feitas para o aumento e embelezamento da casa. Assim rezava o cartório:
«Sendo Vigário Frei Henrique de Leiria, no anno de 1450, se pintou o retabolo do altar mór, o qual pintou Francisco Annes de Leiria, filho de João Affonso. Levou de o pintar, doze mil réis, brancos. O dito pintor pintou na parede o Crucifixo da igreja, e a Custodia do Corpo de Deos, e S. Gregorio, e o Senhor com os seus Martyrios, e o Crucifipo do Refeitório. E o carpinteiro que fez o retabolo chamava-se Mestre Simão, o qual mandou fazer Frey Lourenço d'Azambuja, sendo Vigário; e o dito Mestre fez o Coro do dito Oratório e a Custodia do Sacramento. Derão-lhe um moyo de trigo e dous mil réis, e de comer a elle e a Cornelio, seu mancebo freixeiro.»
O primeiro muro que fechava a cerca foi feito em 1473, e ficava uns dez metros mais para dentro do que o actual, de ambos os lados. Ainda há vestígios dele, do lado dos Refugidos, perto da Paciência; e, do lado oposto, na mata, por baixo da escada da Ascensão. Foi no Capitulo da Ordem, celebrado no convento de Alenquer, em 1468, que se assentou em fazer-se tão neces­sária obra, e se autorizou, para o custeio dela e a compra de dois Breviários para o coro, a venda de uma cruz de prata que havia no convento, do peso de sete marcos, e de outra que estava quebrada.
A vedação deve ter sido apenas dos lados e pelo fundo; porque, como naquele tempo o limite da propriedade de Odivelas era a rocha, cortada a pique, que ainda se vê na mata, o muro deixava de ser necessário para aquela parte.
Em seguida vem a notícia de outra fome, em 1485, acompanhada, como geralmente era, da peste, consequên­cia fatal da má alimentação. O alqueire de trigo que, antes dela, se comprava em Alenquer por quinze ou o máximo vinte reis, subiu a noventa e nove reis.
«Era, n'este tempo, muita fome» diz o Cronista, «e muita pestilência, e morria muita gente assim com a fome como com a pestilência».
No ano seguinte, de 1486, havendo dissenções entre alguns frades da Ordem Franciscana, querendo uns viver com mais austeridade do que a outros convinha, cele­brou-se um Capitulo em Alenquer para resolver a ques­tão, o que se fez nomeando-se esta casa da Carnota, com algumas outras, para residência dos frades que quisessem seguir a regra mais rigorosa do glorioso Santo An­tónio.
Novas obras se fizeram no ano de 1511, no vigariado de Fr. Pedro de Santa Catarina. Foram estas: «um lavatório junto da fonte da Samaritana, porque não havia em que lavar senão duas pias de pedra que rompiam a roupa. Fez mais uma chaminé, junto da porta da cosinha, para se enxugar os frades hospedes quando viessem molhados. E sendo Vigário Frey Jaymes, frade leigo, aranjuez de nação, se fez o relógio de ferro com suas rodas e campana, o qual fez Frey João da Comenda, frade leigo, portuguez».
Como adiante hei de mostrar, a igreja de que se pin­tou o retábulo em 1450 não era a actual, mas outra que devia ser muito mais pequena, pois se lhe dá o nome de Oratório. O relógio de ferro, se existia em 1834, foi tirado depois; porque em 1860 existiam dele somente os pesos, que eram de pedra, e parte dos azulejos do mos­trador, o qual ficava do lado do campanário, por cima da porta da sacristia, e tem os algarismos _ _ 1 2, não sendo possível fixar-se qual o numero correspondente ao século que falta.
Por aquele tempo parece ter havido um grande tre­mor de terra (porventura o de 1531), que arruinou bas­tante o convento, «ficando só as paredes abertas para testemunha do edifício porque tudo o mais estava por terra, rendido, ao golpe de tão grande estrago».
Os religiosos ficaram sem abrigo e sem terem quem lhes valesse; porque para qualquer parte que voltassem os olhos, não viam senão companheiros no infortúnio.
«Era neste tempo Vigário Frey Francisco Benavilla, frade leigo, que nõ era de missa, e muito bom homem. Elle, com trabalho, andou pedindo esmolas, e deu principio a fazer hum convento novo, e acabou; e entrou apóz elle Frey Álvaro de Santa Cruz, que também trabalhou muito, e nõ farião nada se no fóra Frey Vasco Corrêa, Guardião do convento de Lisboa, em Xabregas, pela bolsa de seu irmão António Corrêa Baharem, e também pediu esmolas a gente rica e fidalgos da cidade; mas António Corrêa se pode dizer que deu tudo para acabar o convento, e por esta causa, e por outras grandes esmolas que fazia, e sua muita devoção, pêlos annos adiante se lhe deu o padroado d'este Convento. E d'esta vez se fez a capella mór, côro, capitulo, enfermaria, dormitório, affirma Frey Álvaro da Cruz, no cartório antigo debaixo do seu signal».
Em 1546, outra vez a fome, com uma «falta de viveres, que andavão os homens em termos de se comerem huns aos outros, subindo o trigo, ao preço de cruzado, cousa nunca vista».
Felizmente a duração foi pequena. No anuo seguinte as doenças pararam, os ares purificaram-se, e foi tal a abundância, que por dez tostões se vendia um moio de trigo no Alentejo, e do mais estremado, no Terreiro, a trinta réis o alqueire.
Durante toda a primeira metade do século XVI, a casa da Carnota seguiu a regra do Taumaturgo Lisbonense, embora pertencesse á Ordem de S. Francisco. Mas a separação desta e das outras casas, ordenada em 1486, não fez cessar as divergências entre os irmãos da Ordem, como se esperava, antes as avolumou; porque deu lugar a disputas sobre preferências, querendo os franciscanos ter a primazia pela antiguidade da origem, e os antoninos pela sua extrema virtude e austeridade. Em 1565 os conventos antoninos formaram-se em Custodia, que era um agrupamento de conventos, sujeitos a uma Província, mas governados por prelados seus.
Não satisfeitos, porem, ainda assim, os antoninos alcançaram da Santa Sé, um breve, datado de 8 de Agosto de 1568, pelo qual se se constituiu uma Província nova, com a denominação de Província de Santo António dos Capuchos, e dela ficou a casa da Carnota formando parte, até á dissolução das ordens monásticas em 1834.
Por este tempo os frades tiveram ensejo de alargar os seus limites, e aproveitaram-no. Uns vizinhos dos Refugidos, João Gonçalves e sua mulher Maria Gomes, por escritura de doação, feita em 1546, deram-lhe um pe­daço de terreno, fora da primitiva cerca; e Pêro Sobrinho de Mesquita lhes fez doação de outro pedaço, em con­sequência de que puderam fazer o muro actual, e levá-lo até alem da linha do rochedo, ficando-lhes assim, dentro do recinto as nascentes que davam água para a casa, e podendo tornar a floresta mais ampla e pitoresca.
Foi esta a época em que mais desenvolvimento teve o embelezamento da propriedade.
Achava-se aqui refugiado, em 1557, D. Manuel de Portugal, membro da bem fidalga casa daquele apelido. No seu serviço tinha um flamengo, cujo nome o Cronista não indagou, mas que diz ser tão perito, na arte da escultura, que dava a entender na perfeição, que dele tinha aprendido Phidias; no que parece haver algum tanto de exagero.
Este homem dedicou-se á fabricação de imagens de barro cozido que se colocaram em capelinhas espalha­das pela mata. A primeira que acabou foi a de Cristo no Sepulcro, que ficou em uma capela metida debaixo do enorme penedo ao lado do qual se sobe pela escada da Ascensão. Depois lavrou uma imagem de S. Francisco recebendo as Chagas, que se diz ter sido um primor de viveza.
Em 1563 temos notícia autêntica de outras obras feitas e relatadas em um documento que estava arquivado no cartório da casa. No referido ano, pouco mais ou menos, foi eleito Guardião Fr. Francisco de Santa Águeda, religioso de grande engenho e habilidade, o que sendo visto pelo Prelado Maior, lhe mandou que cons­truísse as ermidas, os Santos das quais ele fez por sua mão e pintou; e por seu risco e ordem se fizeram as mais obras, de que deixou a seguinte memória, escrita de seu próprio punho. Diz ele:
«Não era a minha tenção fazer memória do que fiz n’esta casa sendo Guardião della; porque fiz o que sempre obrey em as mais casas, sendo súbdito; mas por rogos dos Religiosos, aqui moradores faço esta lem­brança, para que se sayba a muita devoção que se tinha a este Convento, e Deos seja louvado. Em oito annos que nesta casa morey, seis e meyo Guardião e hum e meyo súbdito, em todos elles houve sempre obras. Nas mais das semanas andavão trabalhando quinze e vinte homens. A todos se dava de comer e meyo jornal. Aos officiaes a tostão e quatro vinténs; e aos trabalhadores a dous vinténs. E nunca Deos faltou com o provimento assim para os religiosos como para os officiaes.
«Na primeira vez que fuy Guardião, se fízerão as obras seguintes: os pórticos da entrada, e o muro da clausura mais junto da casa; porque as mulheres chegavão até ella. Fizerão-se as ermidas da Ceia até á Ascensão, com todos os sucalcos e escadas, canos, tanques, e vallas para se tomarem as aguas. Fez se, na rua de cima, a ermida da Magdalena e a de S. António, e se alargou a rua, por ser muito estreita; e também se fez parte da igreja, que a velha cahio nesse tempo. Tudo o sobredito se fez com esmolas de pessoas devotadas.
«Sendo provincial o irmão Frey Simão da Natividade, eleito segunda vez, me fizerão segunda vez Guardião desta Casa de Santa Catharina da Carnota. As obras que se fizerão neste tempo forão as seguintes: — A portaria, sucalcos e escadas para a horta, a fonte da Samaritana, e a esquadra dos Fariseos com tudo o que era necessário para ella.
«Fez-se a cosinha, alargando-se, fez-se a procuração com a casa de dentro que serve de despejos, abrindo-se por baixo da terra. Forrou-se a Portaria e a Hospedaria, e emmadeirou-se de novo quasi toda a casa. Assentou-se o retabulo do altar mór, o qual fez um irmão ao dito Guardião, frade leigo, que depois fez também os dois collateraes e os santos d’elles. E também fez o Christo Crucificado, Nossa Senhora e S. João; que estão sobre o arco cruzeiro, que todas são de madeira, excepto as do Desposorio de Santa Catharina, que são de barro. Também concertou grande parte dos muros, porque em seu tempo se arruinaram. Também fez a calçada toda que vae por junto do muro para o Refugidos».

O bom frade acaba o seu relatório com estas pala­vras: «Peço perdão a todos os religiosos, assim presentes como futuros, e que não se queixem de mim em fazer as ermidas, senão dos Provincíaes que me mandaram».
Pena foi que, assim como ele as fez, e os seus supe­riores o encarregarem das obras, não houvesse depois prelados e frades que cuidassem da conservação delas. A posteridade não os censuraria, antes lhes teceria lou­vores.
O Cronista da Ordem fixa a data do Relatório su­pra em 1653; mas as palavras que sublinhei mostram que aquele ano é erro, sendo provável ter havido trans­posição de algarismos, devendo ser 1563.
O Crucifixo e as imagens que estavam, aquele por cima do arco cruzeiro, e estas uma de cada lado, foram apelados no tempo que o ex-Convento esteve na posse do Sr. de Kantzow, afim do Crucifixo poder ser emprestado para os Ofícios da Semana Santa na vila do Sobral de Monte Agraço. Nunca de lá voltou; e ainda se acha na igreja de Santa Aurélia, da mesma vila, onde é objecto de grande devoção dos povos. Na cruz está gravada a seguinte inscrição:

LEIGO
FES. — F. JORGE—D — BRA
GA ESTAS IMAGES
ERETABOLOS
1564


É, pois, claro que todas as obras mencionadas foram feitas entre 1550 e 1570; que o escultor, Fr. Jorge de Braga, frade leigo, era irmão do Guardião Fr. Francisco de Santa Águeda; e que ambos tinham grande habilidade para moldar e talhar imagens em barro e madeira.
Em 1571 teve lugar neste Convento uma ocorrência que, embora pareça trivial, carece de ser mencionada. Naquele ano, no primeiro dia do mês de Julho, estando ai o muito reverendo Domingos Simões, Capelão do Cardeal Infante D. Henrique, e Secretário do Conselho Geral da Inquisição, juntamente com o Notário da mesma Santa Inquisição, Pedro Álvares, perante eles e as tes­temunhas, Frei Francisco de Santa Ana e Frei Filipe de São Josué, moradores no Convento, compareceu Helena Jorge, viúva de Sebastião de Macedo, de Alenquer, e foi inquirida como testemunha de acusação contra o Cronista mor do Reino e erudito escritor, Damião de Goes, então preso nos cárceres da Inquisição, tio do falecido marido dela. O seu depoimento encontra-se nos Inédi­tos Goesianos, Vol. II, pág. 27. (4)
Segundo assentos no cartório da casa constava que, em 1578, «se fizeram as ermidas do Monte Sinay, e a de Santo António, e a arca da Ressurreição, e o Monte Calvario, e outras bemfeitorias que fizeram esta casa mais devota. As ermidas de S. Jeronymo e de Santa Maria Magdalena, e a de Santo António que está no seu altar, e a de S. Pedro na Cova, fez Frei Francisco dos Santos, natural de Vizeu».
No mesmo ano, por já estarem de posse do terreno superior do rochedo, fizeram a mina que nele há. Diz o Cronista: «E por ser esta agua mui delgada, se apartou da outra fonte que vinha de cima, e d'ahi por deante, em o mez de Março, a recolhiam em uma cisterna para beberem d'ella, por ser mais delgada».
Como há pouco se viu pêlos assentos da casa, a An­tónio Corrêa Baharem, foi dado o padroado da capela-mor em agradecimento da sua muita generosidade na reedificação da casa; e quando faleceu, em 1556, foi aí enterrado, lavrando-se o seu epitáfio na grande campa que ainda existe.
O padroado importava a obrigação de reparar a capela-mor todas as vezes, que ficasse em estado de preci­sar disso. Assim aconteceu em 1603, quando o bisneto daquele grande capitão, outro António Corrêa de Baharem, dispendeu avultada quantia na restauração da capela, e mandou ali colocar o escudo das suas armas.
Além de tudo isso, fez doação perpetua de uma arroba de vaca cada semana, para sustento dos frades, cem esmola arbitraria para os dias de peixe, Adventos e Quaresma.
Em 1622 os frades obtiveram do Papa Gregório XV um Breve para todos os fieis que, confessando as suas culpas e comungando, visitassem a igreja e altar de Santa Catarina no seu dia, sem limitar-lhe as horas, com Indulgência Plenária e remissão de todos os seus pecados.
Quatro anos depois, deu-se nesta casa um facto único e notável na sua historia, qual foi a impressão de um livro, de formato pequeno, verdade é, mas de 784 paginas. Foi a Obrigação do Frade Menor, composta por Frei Dâmaso da Presentação que, em 1626, era pregador e Guardião neste convento. O tipógrafo que assim se obrigou a acarretar prelo e tipo para estes mon­tes, recebendo talvez, apenas o sustento em paga do seu trabalho, foi António Alvares, e acabou a sua tarefa em 1627. Ficou obra razoavelmente perfeita; e tanto que um exemplar, foi mandado para a Exposição de Paris, de 1867, como amostra da perfeição com que se imprimia naquela época. Outro exemplar voltou á casa em 1887, quase no estado em que a tinha deixado, 260 anos antes, e lá se conserva depositado. (5)
O Breve de 1622 foi confirmado em 1628, por Urbano VIII, que lhe juntou outro, privilegiando os altares, para que sendo a missa de sacerdote e religioso morador nesta casa, se tirasse uma alma do Purgatório todas as segundas feiras do ano, sendo tantas as almas quantos os Sacrifícios, estendendo-se ao dia de Todos os Santos e seu Oitavario; com a limitação, porem, que devia haver, nos moradores desta comunidade, o numero de dez sa­cerdotes que celebrassem.
Por outro Breve do mesmo Papa Urbano, concedido em 1638, privilegiou-se o altar de Santo António, ainda mais simplesmente, pois dizendo-se missa nele em dia de Finados e todo o seu Oitavario, e nas segundas feiras de todo o ano, se tirava uma alma do Purgatório, sem a limitação dos dez sacerdotes, bastando que o cele­brante fosse morador na casa. Este Breve foi impetrado por Henrique Henriques, para a capela instituída por seu sogro, Arthur Henriques Sacoto.
Em 1653, alcançou-se de Inocêncio X um expresso, em forma de Breve, para o culto de relíquias de S. Se­bastião, S. Félix, S. Maximiano, S. Gregório, S. Aurélio, S. Faustino, Santa Margarida, e de outros muitos Santos Mártires, que se colocaram na capela mor, aonde algu­mas existem ainda.
No fim do terceiro quartel do século XVII, tendo-se extinguido a linha da varonia de António Corrêa de Baharem, os novos possuidores de sua casa descuraram do pagamento do encargo pio do padroado, e os atrasados acumularam-se até fazerem um total difícil para eles de solver.
Em 1679 o Príncipe Regente, D. Pedro II, movido por motivos religiosos ou políticos, ordenou aos frades que procurassem pôr o padroado livre, porque ele seria padroeiro deste e de todos os mais conventos que na Província o não tivessem. Os sucessores de António Cor­rêa foram intimados, judicialmente, para pagar ou de­sistir do padroado, e como optaram pela desistência, o príncipe declarou-se Padroeiro do convento, ao qual fez mercê, a 21 de Abril do referido ano, de um alvará de sessenta mil réis de Ordinária, pagos pela Casa do In­fantado, visitando depois os religiosos, a quem tratava com particular amor. No mesmo ano de 1679, sendo Guardião Fr. Jerónimo da Conceição, as Armas Reais foram colocadas com toda a solenidade sobre o arco da capela-mor e o da Portaria, aonde ainda se vêem. Provavelmente na mesma ocasião as ossadas dos jazigos dos padroeiros foram passadas para outro, no claustro, na campa do qual se reproduziu o mesmo epitáfio que foi picado na campa da capela-mor, e o escudo das armas dos Corrêas Baharens tirado.
Onze anos depois, a 7 de Julho de 1690, a herdeira da casa dos Baharens, D. Paula de Alcáçova, mulher de António de Basto Pereira, faleceu, e, apesar de ter desis­tido do padroado, trouxeram seu corpo a enterrar no convento. Por convenção, ficou em depósito no carneiro por baixo do altar de Santo António.
Depois da morte de D. Pedro II, o Infante D. Fran­cisco mandou continuar o pagamento da anuidade ao convento; e veio disfarçado visitar a casa. Agradado do que viu, denunciou-se aos frades como seu Padroeiro; e mandou dar-lhes uma esmola de madeiras, do parque de Sernache do Bom Jardim, para as suas obras.
Pessoa que visitou este convento entre 1735 e 1740 deixou escrito que tinha, então, todas as oficinas ne­cessárias, e cómodo para recolher vinte e cinco e mais religiosos, em celas com bem regulados dormitórios. Quinze anos depois, o grande terramoto de 1755 reduziu tudo a um montão de ruínas. O ressalto que há na parede da casa, do lado dos Refugidos, indica bem que, daí para cima, tudo quanto eram celas e dormitórios abateu.
Depois de reedificado, pouco ou nada se sabe da his­toria do convento até á fugida dos frades, e a extinção das ordens monásticas, em 1834, quando passou a fazer parte dos próprios nacionais, e foi arrendado, de ano para ano, ao capitão Francisco Solano de Mendonça e outros, pela insignificante renda anual de 14$400 réis. Durante este tempo, os povos limítrofes aproveitaram-se do estado de abandono em que o prédio estava, para rou­barem tudo quanto lhes apetecia, e que fosse de fácil remoção. Na época da extinção a lotação da casa era de 18 frades.
Tendo sido anunciado para a venda, o convento e a cerca foram vendidos, em 17 de Fevereiro de 1845, ao então ministro da Suécia, Carlos Adolfo de Kantzow, depois feito Barão de S. Jorge de Kantzow, pelo preço de 2073$500 réis, na forma da lei, isto é 207$300 réis em metal, 626$200 em papel moeda, e 1:240$000 réis em títulos denominados azuis.
Aquele cavalheiro tornou, a vender tudo, por escriptura de 5 de Fevereiro de 1852, lavrada na nota do tabelião de Lisboa, João Baptista Scola, a John Smith Athelstane, depois feito Conde da Carnota, sendo o preço do imobiliário de 800$000 réis, em metal, mas entrando na venda, por convenção particular, mobiliários no valor de 250$000 réis.
Durante o tempo que a propriedade esteve em poder do Conde da Carnota, o edifício e a cerca sofreram uma completa restauração e alteração, sendo quase todas as obras de madeira feitas por carpinteiros ingleses que mandou vir da sua pátria. Até ao tempo do seu falecimento, tinha gasto nestas obras mais de dezoito contos de réis.
Pelo falecimento do Conde da Carnota, esta quinta, com tudo o mais que possuía em Portugal, passou ao poder do actual proprietário, o autor deste insignifi­cante livro, que, com igual amor e dedicação, embora com menores recursos e menos perícia, tem diligenciado conservá-la e embelezá-la.
Nesta grata tarefa foi, durante os anos que decor­reram de 1887 até 1903, auxiliado, muito proficuamente, pela Exma. Senhora D. Joanna Ignez Maguire Henriques, sua segunda esposa, que nasceu em Inglaterra a 14 de fevereiro de 1844 e falleceu a 28 de Novembro de 1903, em Lisboa, aonde jaz no jazigo da casa, no Cemitério do Alto de S. João. (6)
Em diversas épocas, esta casa foi enobrecida pela residência nela de alguns frades dos mais notáveis da Ordem pelas suas virtudes e letras, entre os quais se pôde mencionar:
Fr. Diogo de Árias — o fundador deste convento, e dos de Santa Maria do Mosteiro, Nossa Senhora da Ínsua, e Santo António da Castanheira. Este santo homem, espanhol de nascimento, morreu aqui, em 1420, e foi enterrado perto da porta da primeira igreja, em sitio hoje ignorado.
Fr. Garcia de Montanos — também espanhol, e um dos companheiros de Diogo Árias. Foi o primeiro guardião deste convento. Era muito estimado pela sua devoção e caridade.
Fr. Affonso Sacco outro companheiro de Diogo Árias, foi vigário deste convento, e guardião de alguns outros, incluindo o de S. Francisco de Alenquer. Deste religioso diz o padre Povoa que «comportava-se bem em tudo, sempre obedecendo ás regras da ordem, e muito penitente. Trajava um habito tão estreito que parecia um sacco, donde lhe veiu o appellido. As suas maneiras no confessionário eram tão suaves que el-rei D. Duarte veiu «aiqui bastantes vezes confessar-se a elle, e não podendo persuadil-o a fixar sua residência na corte, o deixou fi­car com o titulo de seu confessor. Morreu em setembro de 1437».
Fr. Francisco do Monte Alverne — conhecido no secular por Francisco Corrêa Baharem, homem de grande ta­lento, formado em Coimbra, membro do Santo Ofício e deputado daquele tribunal em Évora, aqui professou e passou alguns anos da vida. Sendo nomeado para varias guardanias, saiu da Carnota, e ignoro aonde faleceu. O seu nome indica que era da família da quinta da Con­dessa.
Ruperto — Em 1525 tomou aqui residência um pere­grino chamado Ruperto, húngaro de nação. A sua pre­sença na cerca foi descoberta pela forma seguinte: Em Julho daquele ano, Fr. Simão do Cercal, noviço, passeando pelo bosque, no sítio que é hoje o fundo da escada da Ascensão, encontrou entre as árvores um homem des­conhecido. Dando parte ao guardião, Fr. Theodosio, este mandou procurar pela cerca; porém o homem nunca mais foi visto, sendo apenas encontrado, na rocha que lhe servia de leito, um livro intitulado VITAE PATREM, algumas cruzes de pau e a ferramenta com que as talhava, e uma carta do bispo de Nicopolis, dando a saber que o porta­dor era soldado, e natural de S. Filipe, na Hungria. Depois de pelejar contra os mouros alguns anos, resolveu afastar-se do mundo, e tratou de procurar um sitio para levar a efeito esta tenção. Foi á Terra Santa, daí a pé, e ajudado pelas esmolas que lhe davam, passou para San­tiago, na Galiza, e de lá, continuado viagem, veio a este sitio, aonde parecia ter residido algum tempo oculto.
Fr. António de Santa Maria — No dia de Nossa Se­nhora da Conceição, 1588, morreu aqui Fr. António de Santa Maria, natural de Viseu, que tomou o hábito aos 20 anos e morreu aos 70. Foi secretário do Padre Fran­cisco Noé, ultimo ministro de ambas as Províncias, e depois de ser eleito por diversas vezes prelado da Ordem, foi, em 1580, eleito Provincial. Foi enterrado á porta do Capitulo.
Tendo sido historiado na generalidade, esta vetusta casa, vou agora tentar uma leve descrição das suas di­versas partes.
Começando no portão que é a entrada principal, na actualidade, convém dizer-se que tanto ele como as casas de habitação ao pé foram obra do Conde de Carnota. A entrada, no tempo dos frades, era pela primeira carreira de arcos, entre a qual e o actual portão, o terreno estava franco ao público. Na primitiva aqueles arcos deviam ter sido abertos e, portanto, o pátio também estava fran­co; mas, em 1860, os dois arcos dos lados estavam tapa­dos com pedra e cal, e no do meio havia um portão de duas valentes meias portas, nas quais estavam pintados os algarismos — 1669 — que, provavelmente, represen­tavam o ano em que foi colocado, sendo então certo que a madeira de cipreste de que as portas eram feitas tinha sofrido, ao ar livre, dois séculos de calor, frio e humi­dade, unicamente com a primeira pintura, sem maior de­terioração.
Uma dessas meias portas está ainda em serviço no lagar de azeite da quinta do Amaral.
Sobre os três arcos desta carreira, há igual número de nichos. No do meio havia figuras representando a degolação de Santa Catarina; e nos dos lados duas está­tuas de frades. A cada extremidade a figura de um anjo. Por fora, entre os arcos, e entre estes e as paredes laterais, há quadros de azulejos com as poesias seguintes, na ordem em que vão, começando do lado da mata.

Entra devoto romeiro
Mas antes de entrar repara
Na sanctidade mas rara
De Pedro que foi primeiro
O retrato verdadeiro
Desse Serafim chagado:
Nelle veras copiado
O rigor, a penitencia,
Santítidade, abstinência,
De que seo Pai foi dotado.
________________

Olha, contempla e repara,
Neste Leão, e Cordeiro
Se o Tyranno he carniceiro,
Catharina he cordeiro na Ara:
Quando a tyrannia rara
Lhe corta a cabeça fora
Então a fez ser credora
De três coroas prevenidas
Que o Ceo lhe offerece luzidas,
Por Virgem, Martyr e Doutora.

________________

Já que reparas curioso,
Vê neste cruel delírio
Como Catharina o Martyrio
Soffre com peito animoso:
Mas se o golpe rigoroso
Desse Tyranno homicida
Morte lhe deo atrevida
Nella lhe segura a palma;
Pois pelo Martyrio a alma
Foi gosar a eterna vida.

________________

Este que vês retratado
Da sanctidade portento
He quem foi do Sacramento
Devoto mais sublimado
He quem depois d'acabado
O curso da mortal vida
No mausoléo presentida
Da Hóstia a elevaçam
Tributou em venereçam
A Christo a honra devida.


Passados os arcos penetra-se no pátio, que na época de florescer das belas olaias que o ornam dos lados, fica atapetado daquelas lindas flores. Uma porta para a es­querda, e outra para a direita, dão ingresso para a mata e para a parte inferior da quinta, respectivamente. São am­bas modernas; porque a estrada antiga para a mata fi­cava entre a segunda carreira de arcos e a escada por onde se desce para a igreja; — e as únicas entradas para a parte inferior da cerca eram pela portaria ou pela igreja.
No pátio, a meia distância entre as duas carreiras de arcos, havia no muro do lado da mata, uma fonte de mármore (7), que hoje está no claustro, por onde corria agua que vinha de cima enquanto a mina a dava. Sobre a pia, em um nicho oval, há uma imagem de S. João Bap­tista, hoje quase de todo destruída pela acção do tempo (8); e dos lados, nos azulejos, liam-se duas poesias em louvor do Santo que começavam:

Respirar um ar campestre,
Apartado dos mortaes,
Vestir peles de animaes,
Comer hervas, mel sylvestre,
Com sustento mais que agreste
Ver da morte o rosto perto,
Descalço e apenas coberto,
Ao rigor do frio e neve
Eis o viver que teve
O Baptista no Jordão.

Em seguida vem a segunda carreira de arcos, entre os quais há dois nichos com figuras de tamanho natural representando, a da esquerda S. Francisco, tendo o mundo debaixo dos pés, e acorrentado a este a Ira e o Luxo; a da direita Santo António com o Menino sobre o livro. Por cima do arco do meio, em um pequeno nicho, está Nossa Senhora da Conceição. (9)
No pedestal da imagem de S. Francisco há azulejos com ás seguintes estrofes (10):

Em o lado do Redemtor
Tem Francisco o seu lugar
Lá no Céo por singular,
Em prémio do seu amor;
Delle cobrou o valor
Com que venceo alentado
O que se vê destroçado
A seos pés com tanta gloria,
Que tem segura a vitoria
Quem traz a Jezus no lado

Por baixo da imagem de Nossa Senhora da Conceição, lê-se nos azulejos:

Obriguei-me a proteger
De Francisco a Religião,
Pois a minha Conceição
Se empenha em defender.

Aos pés do fundador da Ordem dos Capuchos os azu­lejos dizem:

Oh! com quanta suspensão
Tão sacro, bosque admiro,
Se à António neste retiro
O Ceo nesta solidão
Nelle louvores se dão
A Deos e he desprezada
Do mundo a gloria, e nada
Vale sagaz o demónio,
Porque guarda Santo António
Com Jezus a sua entrada


Para a direita destes arcos está o alpendre da que foi, em tempo, a sumptuosíssima ermida de Nossa Se­nhora da Graça, hoje transformada em celeiro; porque, para casa particular, bastava um edifício para o culto, e a igreja conventual é que apresentava mais conveniên­cia para a conservação, por ser maior e mais bem conser­vada, e por ter comunicação com a casa de residência.

A Ermida

Tanto o autor do Santuário Maríano, como Fr. Martinho do Amor de Deus, confessam não poderem fixar a época em que a imagem que deu lugar á edificação desta ermida foi feita, podendo apenas fixar aquela em que começou a ser especialmente procurada pelos fieis.
A primitiva imagem (pois a actual é moderna, como logo hei de mostrar) era de pedra; mas tudo indica que pouca diferença teria da que agora existe. Achava-se, no princípio do século XVII, em um alpendre ou ermida aberta, na mata, quando uns barqueiros vindos ao que se diz de Abrantes, foram ter a Povos e lá, deixando seus barcos, vieram á Carnota. Viram esta imagem de Nossa Senhora da Graça, cobiçaram-na e levaram-na roubada. Chegaram outra vez a Povos; meteram o objecto do seu sacrílego furto em um dos barcos, e com a maré a favor e o vento em popa soltaram as velas.
Todos os barcos abalaram, sem a menor demora, ex­cepto aquele em que estava a imagem, que nem o vento nem a força de remos foi capaz de pôr em andamento.
Depois de varias e infrutíferas tentativas, sugeriu-se aos barqueiros dele a ideia que a dificuldade que encontravam nascia da Senhora não querer estar senão no local donde a tinham tirado. Saltaram em terra, fo­ram ter com o padre António Cosme, prior de Povos, que então era, confessaram o delito que tinham cometido, e entregaram-lhe a imagem para ser devolvida aos seus legítimos possuidores.
O prior avisou os frades do acontecido, e o Guardião mandou dois religiosos buscar a imagem. Quando estes se aproximavam, no regresso, toda a comunidade saiu para receber, condignamente, a milagrosa Senhora. Levaram-na para a igreja, e colocaram-na no altar-mor para, depois das Completas, a levarem á sua Casa. Era já sol-posto. O Guardião mandou reunir os religiosos, e saíram do convento em procissão, com a Senhora, para a mata, cantando a Ladainha.
Era já tão tarde que todos os passarinhos estavam recolhidos aos seus abrigos.
«Caso maravilhoso!» diz Frei Agostinho de Santa Maria (11). «Assim como os religiosos saíram da igreja cantando a sua Ladainha, foi vista uma grande multidão de passarinhos que, saindo das árvores aonde estavam recolhidos, formaram no ar um coro, em que mostravam ir cantando outra Ladainha, com grande melodia de vozes, louvando e festejando a Senhora; e o que causou maior admiração aos religiosos, foi verem os corvos que viviam e criavam por aquella mata, juntos em outra turma, fazer também outro coro grasnando, ao seu modo, e festejando a sua Senhora.
«Admirados os religiosos deste prodigioso sucesso, quiz o Guardião experimentar se aquelle ajuntamento das aves seria acaso; e assim, no dia seguinte, fez outra procissão ás mesmas horas; e não apareceu pássaro algum.»
Posta novamente a santa imagem na sua capelinha, á qual se fez então porta de fechar á chave, cresceu de tal modo a devoção, que foi necessário fazer-lhe nova casa e maior, o que se fez em 1680, sendo a trasladação feita, com muita pompa, em 23 de Novembro de aquele ano. Era então. Guardião, Frei Tomás de S. Francisco, natu­ral de uma aldeia vizinha.
Segundo Frei Martinho do Amor de Deus, era aquela a ermida aonde a Senhora se achava ao tempo do seu livro (1740), e que, por terem faltado as esmolas, estava ainda por completar; mas isto está em divergência com as inscrições que ainda existem no próprio edifício.
Frei Agostinho de Santa Maria conta mais que, tendo começado o círio de Lisboa a vir aqui prestar o seu culto, em uma das suas visitas alguma faúlha dos foguetes, fez com que pegasse fogo na mata. Imediatamente os fra­des saíram com a Senhora em procissão, puseram-na em frente do incêndio e logo se apagou.
Em 1727, segundo uma inscrição no edifício que adiante hei-de reproduzir, começou-se a edificação de um novo templo, que se fez a expensas do Círio de Lisboa, e com o auxílio do dos Refugidos. Oito anos depois a pri­meira missa foi dita nele em domingo do Espírito Santo de 1735.
Quando se assentou a primeira pedra daquele edifí­cio, os frades, para tornar a cerimonia mais imponente, resolveram levar a Senhora em procissão até ao sitio da obra. Faltava-lhes, porém, o equivalente da filarmónica moderna — um clarim; e ficaram pesarosos disso. De repente aparece um preto, ricamente vestido, coloca-se á testa da procissão, empunhando formoso clarim, e toca com perícia até a procissão se recolher, quando desapareceu tão misteriosamente como aparecera.
No tempo da Invasão, no princípio do século XIX, parte do exército francês ficou aqui aquartelada, e os soldados tentaram abrigar os seus cavalos na ermida. Os cavalos não quiseram entrar; e os homens, como bons católicos, entendendo que era a influência da imagem que lhes metia pavor, como maus católicos despedaçaram-na. Os festeiros mandaram, depois, fazer outra, a actual, que, estando já toda desconjuntada, foi completamente restaurada em 1896.
A ermida em 1860, via-se que tinha sido planeada para ser de abóbada de tijolo, e essa abóbada foi, com efeito, construída por 1880, quando começou a servir de celeiro; mas, naquele tempo, o tecto do corpo do edifí­cio era de madeira e abobadado, forrado de lona, e muito bem pintado e dourado. A capela-mor, era, como é, de abóbada de tijolo, forrada de bons azulejos, representando a coroação da Virgem (12). No coro havia abóbada de estuque com pintura a fresco, de fino desenho e cores, de que ainda há restos.
Os dourados e imitações de mármores, em todo o in­terior da capela-mor e no corpo da ermida, eram lindís­simos. Quando as imagens foram passadas para a igreja conventual, a uma do altar e o púlpito foram dados á igreja de Triana, em Alenquer, que andava, então, em restauração; e parte dos outros dourados a um fidalgo inglês, John Harvey, que os levou ao seu solar de Ickwell-Bury, perto de Biggleswade, no condado de Bedfordshire, em Inglaterra, onde se acham no vestíbulo do palácio.
Antes da extinção dos conventos, o círio de Lisboa, da corporação dos Bacalhoeiros, costumava aqui vir fes­tejar pelo Espírito Santo. Saíam de Lisboa e iam festejar primeiro o convento de Alverca; depois seguiam para a ermida de N. S. do Tojo, perto de Castanheira, aonde se fazia uma pequena festa; e por fim chegavam á Carnota. Aqui eram três dias de festas, com cavalinhos, e outros divertimentos. Em cada um dos dias vinham círios de outras terras, e assim a animação era sempre crescente.
Acabaram os frades, e o círio de Lisboa deixou de vir. Um círio de Pancas continuou a fazer uma pequena festa, uns anos por outros, até 1863, quando a licença lhes foi retirada por causa de excessos da parte do povo; e só se tornou a fazer, mas já com a imagem na igreja conventual, no ano de 1892. Desde então fez-se, anualmente, com excepção dos anos de 1896 (13) e 1903 até 1905 quando acabou de todo.
Entrando pela porta principal, nos azulejos da di­reita lê-se:

N'esta ermida, se dice a p.ra misa em Domingo do espirito santo do anno de 1735.

E nos da esquerda:

Esta ermida mandou fazer o cirio de Lix.ª e concorreu p.a ela o cirio dos refugidos.

Na parede lateral da direita há um grande e belo quadro de azulejos, representando o lançamento da primeira pedra desta ermida, e o aparecimento do preto. Por baixo tem a inscrição:

Quando se deytou a prmeyra pedra no alicercio d’esta ermida querendo os religiosos trazer a senhora em proçição e tendo m.ta pena de não terem hum clarim pa assistir a esta função e de emprouizo apareceu hum Preto q ueio tocando adiante da proçição athe se tornar a recolher a S raa sua Ermida ano de 1727.

O quadro correspondente, na outra parede, representa o episódio que teve lugar no cais dos Povos; mas, tanto neste como no primeiro, a paisagem é puramente de fantasia. Por baixo lê-se;

Sendo furtada esta imagem de N. S. da graça por certos homes de Ribatejo para a collocarem na sua terra e querendo dar a vela no caes de Pouos nunca o poderão conceguir e vendo que to­dos os mais Barcos o fazião sem nenhum impedim to entenderão ser a causa o furto que tinhão feito da dita Sra e tirando-a do barco logo aba­lou, e uindo os religiosos buscar a Sra em pro-çiçâo a colocarão na çua ermida e os passarinhos acompanharão com çeu canto a dita porçiçáo em çinal de tão boa uinda, no anno de 1647.

É provável que os azulejos que revestem as paredes da capela-mor, e que representam cenas da vida da Vir­gem Maria, sejam os que ornavam a ermida anterior a esta; porque são de um desenho e tom mais antigo e me­nos artístico.

A Hospedaria dos Festeiros

Pegada á ermida há uma casa de habitação, hoje bas­tante arruinada, e que, em tempo, foi um pouco mais ampla. Na parede da frente há um painel de azulejos, tendo no meio uma pedra, por cima da qual há uma figura de Nossa Senhora. Na pedra lê-se:

estas Cazas
MANDARAM FAZEr OS
FESTEIROS Q FESTEIÃO
PELO ESPTO STO A. N SRA DA GRA
ÇA NO ANNO DE MDCCLXIX
(A figura de uma alma do Purgatório)
1769

A licença para a construção destas casas foi dada pelo Provincial Frei António da Nazaré, e confirmada pelo Síndico, Pedro Lobo Luiz d'Almeida, morador em Arruda, em 20 de Julho de 1744, sob as seguintes con­dições.: Que toda a obra Seria custeada pelo Juiz, Escri­vão, Tesoureiro e Mordomos do Círio de Lisboa, visto terem solicitado a licença para fazer umas casas aonde se pudessem acomodar quando vinham festejar; que os frades não teriam de concorrer com quantia alguma para a conservação; que quando, por ventura, as casas viessem a precisar de reparos, os requerentes seriam obrigados a repará-las; que nas casas: não se poderia abrir porta nem janela para a cerca, mas apenas algumas frestas estrei­tas para ar e luz; que os requerentes nunca poderiam alegar direito ou posse alguma nas ditas casas; e que quando se retirassem, depois das festas, as chaves fica­riam sempre em poder do Guardião do Convento. Durante bastantes anos os festeiros vieram com suas famílias veranear nestas casas que estavam sempre bem providas, de mobília, louça da índia, roupas e mais objec­tos precisos para uso de quem aqui residisse.

Descendo-se pela escada nobre que conduz ao alpen­dre da igreja vê-se, por cima do arco dele, um nicho com figuras que representam o Martírio de Santa Catarina; e, no topo da pedra que fecha aquele arco, o escudo das armas reais, aí colocado quando o convento passou a ser do padroado Real.
Para a direita do alpendre ficava a chamada hospe­daria do Convento, que era uma casinha de quatro quar­tos, hoje a sala de bilhar, comunicando com a casa, no primeiro andar, e armazém no pavimento térreo (14).
Debaixo do alpendre está a porta principal da igreja e a Portaria, havendo, por cima desta, um nicho aonde, outrora, estava uma pequena imagem do orago da casa. Na verga de pedra lê-se:

Nõ est hic alivd nisi
Domus Dei et porta coeli
Genes. Cap. ver

A Igreja

É um templo no gosto severo e singelo que a pobreza e humildade da Ordem Franciscana exigia. As paredes, caiadas na parte superior, estão: revestidas na inferior de azulejos; mas são azulejos que logo atraem a atenção de quem os vê pela correcção do desenho, profusão da ornamentação, e a graduação artística dos tons do azul que é a cor normal.
No corpo da igreja estes azulejos estão em quatro painéis. Para a esquerda, aliando se entra pela1 porta prin­cipal há, do lado da porta (1) a Apoteose de S. Catarina, e, na parede lateral, (2), em dois quadros a Santa defendendo a Fé de Cristo perante os sábios pagãos, e a Degolação da mesma Santa. Para a direita (3), O Depositário místico da Santa, e, na parede lateral (4), o Milagroso despedaçamento das rodas de navalhas em que a Santa devia ser supliciada.
Na parede do lado do altar que foi de S. António, e hoje é de N. Sr.ª da Graça, um quadro de azulejos representa aquele Santo pregando aos peixes. Outro, cor­respondente, ao lado do altar de S. Francisco, representa o fundador da Ordem Seráfica recebendo as Chagas.
Os azulejos que revestem as paredes da capela-mor, são mais modernos, e, representando os jardins de um mosteiro de frades, com fidalgos passeando de cabeleiras do século XVII, destoam um pouco, e suscitam dúvidas sobre a razão de aí se acharem. Sugeriu al­guém, em tempo, que aqueles azulejos foram aí colocados depois do convento passar a ser do padroado real; e que representam, embora com amplíssima licença poética, as visitas dos Infantes ao convento.
A oito colunazinhas da teia, de mármore de cores embutidos de branco, merecem reparo. (15)
Os vitrais foram colocados em 1897 em substituição dos vidros embaciados e escuros do tempo dos frades. (16)
As duas imagens de vulto, de S. João e N. Sr.ª das Dores, que estão presentemente nos nichos fora da teia, de um e outro lado, são as que estavam aos lados do Santo Cristo, por cima do arco cruzeiro. Cada uma é feita do tronco de uma árvore, vazado por traz, para diminuir o peso, e foram ambas, lavradas, como já se disse, por Frei Jorge de Braga, em 1564.
As duas imagens de santas, de um e outro lado do retábulo do altar-mor, as misulas, em que estão postas, a maquineta da imagem de N. Sr.ª da Graça, e outros dourados de igual aparência, vieram da ermida daquela Senhora quando foi extinta.
Debaixo da maquineta de pão santo na grade do coro havia, outra, um Santo Cristo de grandes dimensões, que há toda a razão de crer ser aquele que hoje está na sacristia da igreja de Triana.
A última sagração da igreja teve lugar em Maio de 1864, por despacho do Dr. Cicouro, Vigário Geral do Patriarcado, dado em 3 daquele mês.
Em uma carreira de campas, pelo centro da igreja acima, há as seguintes inscrições:

(Em frente da porta principal):
S. DE MANOEL DE MIS
QVITA E DE DONA GUI
MAR SVA MOLHER

(Á entrada da porta da teia):
aqvi ias marti.v a° de
gamboa fidal
go da casa delrei
NOSSO SNOR

(Entre a teia e o arco cruzeiro):
ESTA SEPVLTVRA HE DE
GIL VICENTE DA MAIA
HE DE SVA MOLHER LIA
NOR PERESTRELA DE
BRACHIFORTES HE DE
SEVS HERDEIROS FAL
LECEO R 15 DE JANEI
RO DO ANO DE 1541

(Na parede, ao lado do altar de N. Sr.a da Graça, ha uma chapa de metal, assente sobre um folha de már­more branco, na qual se lê o seguinte) (17):

In loving Memory of John Smith Athelstane,
Conde da Carnota. born May 9 th. 1812, died
April 17 th. 1886, buried at Cadafaes, G. J. C.
Henriques placed this. Ann, his wife, who died
1856, lies here.

De facto, como a inscrição declara, o carneiro debaixo do altar de Santo António, a entrada para o qual fica para lá da teia, jazem os restos mortais da esposa do Conde da Carnota. O jazigo pertenceu em tempo a Álvaro Pires Pacheco e, por seu falecimento, passou a Bernardino Ribeiro Pacheco que, por ser, tam­bém, proprietário do jazigo no Capítulo, mandou remo­ver para este as ossadas dos seus maiores que estavam no outro, e deixou aquele que despejou á comunidade. Passado tempo enterrou-se nele Artur Henriques Sacoto, dono de uma quinta nos Casais de Carregado, e, provavelmente, outros. Em 1855 já estava sem ossada alguma.
A senhora, cujos restos mortais aí repousam, actualmente, pertencia a uma família inglesa do con­dado de Leicestershire, e casou, em primeiras núpcias, com James Tilby, abastado Solicitador de Divises, no con­dado de Wiltshire, Inglaterra. Em segundas núpcias casou com William Finden; e, em terceiras, em 30 de Abril de 1850, com John Smith Athelstane, Conde da Carnota por Decreto de 9 de Agosto de 1870. De ne­nhum dos casamentos teve sucessão. Faleceu, na Quinta da Carnota, em 7 de Novembro de 1856. (18)
Os restos do Conde da Carnota, depositados, primeiro, no Cemitério dos Cadafaes, como reza o epitáfio, foram, mais tarde, trasladados para o jazigo da Casa, no Cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. (19)
O outro carneiro correspondente, debaixo do altar de S. Francisco (que se diz ter sido, em tempo, de N. Sr.ª da Conceição) foi comprado por Gaspar Arnáo que, segundo a Crónica, foi nele enterrado, assim como a sua esposa, D. Isabel de Mesquita. Esta parece ter sido parente de Manuel de Mesquita Perestrello, que jaz á entrada de igreja. Em 1860 não continha já ossada alguma.
Tenho notícia de ter havido nesta igreja, ou nas dependentes dela, uma campa com a inscrição:

Sepultura de Pero do Amaral e de seus herdeiros.
Falleceu em XXII de julho de XXXVI.

Há mais notícia de se ter enterrado neste convento:
1. Francisca Leitão e seu marido João Henriques, ela filha de António Gonçalves, Cavaleiro da Casa d’El-Rei, e Alcaide-mor de Sesimbra, em 1492, e de sua mulher, Mécia Mendes, aqui jazem, segundo as Memó­rias Histórico-Genealógicas dos Duques do Século XIX, pág. 108.
2. A 8 de Maio de 1682, faleceu António Lobo da Gama, morador na sua quinta do Carregado. Mandou enterrar-se na Carnota.
3. A 7 de Junho de 1630 faleceu Isabel d'Amaral, viúva de Pêro do Amaral. Enterrou-se na Carnota.
4. Em 20 de Janeiro de 1638, faleceu D. Anna, solteira, filha de D. Maria, moradora na sua quinta dos Casais. Enterrou-se na Carnota. (Era filha de Artur Henriques Sacoto, vide retro).
5. Em 31 de Julho de 1655, faleceu Heitor Homem do Amaral, casado com D. Antónia. Foi enterrado na Carnota. (Devia ser filho de Pêro do Amaral).
6. Em 28 de Dezembro de 1658, faleceu Maria Nanes, casada com Silvestre Henriques. Foi enterrada na Carnota.
7. A 5 de Junho de 1663 faleceu D. Antónia: da quinta da Ferraguda, e enterrou-se na Carnota. (Era a viúva de Heitor Homem do Amaral, n.º 5).
8. A 9 de Novembro de 1664 faleceu D. Anna, mulher de João Homem do Amaral e foi enterrada (20) na Carnota.
9. A 26 de Fevereiro de 1672 faleceu D. Mar­garida, viúva de António de Moura, da quinta das Flo­res, e teve de ser enterrada na Carnota, porque a igreja dos Cadafaes estava interdita.
10. A 2 de Fevereiro de 1673 faleceu D. Margarida d’Albuquerque, viúva, moradora na sua quinta dos Pavões. Foi enterrada no seu jazigo da Carnota, Era neta de D. Guiomar e viúva não só do desgraçado D. Agos­tinho de Manuel de Vasconcelos, o primeiro marido, que foi degolado em 1642, mas também do 2.º marido Manuel Childe Rolim, Senhor d'Azambuja. O jazigo é o de Manuel de Mesquita Perestrello, seu avô, que está á entrada da igreja.
11. A 5 de Outubro de 1674, faleceu Silvestre Henriques da Costa, e foi enterrado na Carnota. Possuía a fazenda chamada da Má Lã, próximo da Guizandaria, e era viúvo de Maria Nunes (n.º 6).
12. Em 1677 faleceu Belchior Fernandes, marido de Joanna da Costa e enterrou-se na Carnota, por ter lá jazigo.
13. Aos 12 de Julho de 1680 faleceu a mulher de João Homem do Amaral, e foi enterrada na Carnota. (Era D. Maria da Silveira, filha do prior de S. Estêvão de Alenquer, Manuel da Silveira de Magalhães, Tinha casado apenas 29 meses antes, e era a 2.a mulher do marido).
Estes apontamentos foram colhidos nos livros anti­gos do Cartório da Igreja de Nossa Senhora da Assunção dos Cadafaes. (21)

NOTAS:

. O Manuel de Mesquita, a quem pertenceu o jazigo á entrada da igreja, é Manoel de Mesquita Perestrello, o náufrago da nau S. Bento. Pelo respectivo assento no cartório da freguesia dos Cadafaes vê-se que D. Guiomar, sua mulher, faleceu a 16 de Março de 1626. (22) Era filha de João Teixeira Loba, Anadel-mor dos Besteiros e Bombardeiros, e da sua mulher, Brites Botelho; neta de Luiz Teixeira Lobor mestre de Latira de D. João, III, desembargador do Paço e comendador da Granja de Amarante, na Ordem de Cristo, e de sua mulher, D. Catarina Perestrello (ou Leitão) filha de Affonso Lei­tão e de Mecía Lopes Perestrello.
Manoel de Mesquita Perestrello foi filho de Pêro Sobrinho de Mesquita (que faleceu na Nau São Bento, em véspera do naufrágio) e de sua mulher Francisca Perestrello, parente, pouco afastada, da esposa de Christovao Colombo, o descobridor da América. Creio bem que o valente marinheiro, Manoel de Mesquita, que tão prudentemente construiu aqui, em vida, a sua última morada, não chegou a ocupar lugar nela. Nenhum assento de sua morte ou enterramento tenho encontrado, e é de supor que, vindo a ser enterrado aqui, a esposa completaria o epitáfio com a respectiva data. Em 13 de Março de 1576, estava em Moçambique, e, depois dessa data, não mais há notícia dele.
Escreveu o Naufrágio da Náo São Bento, e um Ro­teiro de parte da Costa Oriental da África, ambos livros de valor, e que te em sido reproduzidos várias vezes. Dele e das suas obras, tratei mais largamente no BoletIm da Sociedade de Bibliophilos Barbosa Machado, 2.º vol.

. Martim Affonso de Gamboa encontra-se mencionado, com um seu irmão, em uma relação dos fidalgos da Casa Real, no começo do reinado d’El-Rei D. João IV. Nada mais tenho conseguido saber dele.

. O ano, no epitáfio de Pêro do Amaral, é de 1636, como consta do respectivo assento no Cartório da igreja dos Cadafaes.
No testamento com que D. Leonor Perestrella faleceu, ela declara que tinha dado licença a Luiz Alvares de Paiva, para que fosse enterrado no jazigo dela na Carnota e, portanto, proibiu aos filhos o serem enter­rados nele, podendo contudo tirar a ossada do pai, se assim lhes aprouvesse. Apesar disso, a filha Cecília manda no testamento que seja sepultada na Carnota no jazigo aonde está o pai e a mãe.
Saindo-se da capela-mor para a antiga sacristia, passa-se pela Via-sacra de outros tempos, que serve de sacristia agora.
A sacristia antiga tinha mais fundo do que actual­mente tem. No fim tinha um belo lavatório de pedra fina, que hoje está na sacristia da igreja paroquial dos Cadafaes; e, em um das lados, um rico arcaz de teca, embutida de marfim e ébano, trabalho oriental, que, durante o tempo que o convento esteve abandonado, ficou tão danificado que só se pôde aproveitar alguns pedaços para outros móveis. Na abobada desta casa ainda se vêem as armas da Ordem e a era 1686.
No fundo da antiga Via Sacra há uma capela com belos azulejos nas paredes e na abóbada um retábulo dos mesmos, representando a descida do Espírito Santo em línguas de fogo; e um altar revestido, também, de azulejos, fingindo riquíssimo frontal.
A campa em frente do altar cobre um jazigo que foi adquirido por D. Brites Brandoa, que, por fim, foi en­terrada na igreja velha dos Cadafaes, junto do marido. Esta Senhora deixou aos frades, no seu testamento, meia arroba de vaca cada semana, e um cântaro de azeite cada ano, ficando o pagamento a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
O lavatório de pedra e o arcáz da actual sacristia vieram da ermida de Nossa Senhora da Graça.
Da sacristia sabe-se para o que era o claustro, em outros tempos. No centro havia um cruzeiro grande de pedra, armado em três degraus, que foi dado pelo Sr. Kantzow á igreja dos Cadafaes. O sítio dele foi ocupado, depois, por um tanque circular que hoje está em frente da casa principal (23); e no seu lugar vêem-se quatro das colunas, que D. João I trouxe de Ceuta, e que estão armadas na mais alta de três degraus piramidais de alvenaria.
Na parede de leste, em seguida á porta da sacristia, havia uma pequena capela de Nossa Senhora, que foi tapada com alvenaria há muitos anos.
Por cima da mesma porta, ao lado do campanário, ostentava-se outrora o mostrador do relógio do con­vento, um quadro de azulejo, tendo em cima o ano da colocação. Ainda existem alguns dos azulejos dele, mas o relógio desapareceu enquanto o convento esteve aban­donado. No pequeno e tosco campanário estava-o sino do convento (24).
Depois vem o Capítulo, uma casa de abóbada que tinha, outrora, um banco corrido, seguro á parede, de cada lado, no qual os frades se sentavam quando em conselho para resolver dúvidas ou eleger prelados. No fim vê-se um altar com seu retábulo de azulejos. No centro da casa há uma grande campa, cobrindo espaçoso carneiro, no qual já em 1860 não existia ossada alguma. O epitáfio nela lavrado, é: (25)

esta capela e sepvltv
ra he de diogvo pacheco
do cõcelho delrei dõ
manoel ho qval por sev
mandado foi dvas vezes
por embaixador a roma
he de sev filho álvaro pis
pacheco he de sva molher
dona francisca da silva
he de sevs descendentes

Diogo Pacheco foi ilustre na carreira civil, e pro­fundo na ciência de um e outro Direito. Logrou parti­cular estimação d’El-Rei D. Manuel, que dele fez esco­lha para secretário da Embaixada que mandou a Roma, em 1505, congratular o papa Júlio II pela sua exalta­ção ao trono pontifício. Como Secretário fez Diogo Pacheco a oração obsdiêncial, admirada do Colégio Apostólico pela elegância e pureza da latinidade. Mas, quando se mostrou verdadeiramente eloquente, foi em 12 de Março de 1514, por ocasião da embaixada de Tristão da Cunha, que D. Manuel mandou a Roma oferecer, ao Papa Leão X, as preciosas e raras primícias do Oriente. E, em verdade, um espectáculo tão novo, tão grandioso e tão magnifico, era para inspirar pensamentos sublimes a um homem muito menos atilado que Diogo Pacheco. Quem não sentiria palpitar-lhe o cora­ção ao ver um poderoso Rei que vinha, por seus embai­xadores, respeitosamente depor aos pés da cabeça visí­vel da Igreja, o rico testemunho da existência de milhões de homens, conquistados pelo estandarte da Cruz, que por todo o globo é o estandarte da civilização?
No ano de 1521 assistiu aos pactos matrimoniais celebrados entre a Infanta D. Brites e Carlos III, Duque de Sabóia.
Em atenção ás suas muitas letras e eloquência (na frase do Cronista Andrade) foi escolhido, para orar na função em que D. João III foi jurado sucessor desta coroa, em 19 de Dezembro do citado ano.
Mereceu os elogios de muitos homens sábios do seu século; vale por todos o Bispo Osório, que lhe chama «virum juris civilis scientia et decendi etiam facultate praeditum». Ignora-se o dia do seu falecimento.
O seu epitáfio parece ser menos exacto quando diz que ele foi duas vezes embaixador a Roma. O embai­xador da primeira vez foi D. Diogo de Sousa, Bispo do Porto: Diogo Pacheco era o secretário. Da segunda vez o embaixador foi Tristão da Cunha; e Pacheco acom­panhou-o, não precisamente na qualidade de Secretário, mas na de orador; porque o Secretário foi Garcia de Resende.
A obrigação da fábrica deste Capítulo foi imposta por Álvaro Pires Pacheco, na sua quinta da Fonte da Pimenta, hoje a azenha assim chamada, que faz parte do casal do Bernardo; e havia obrigação de um ofício de nove lições ofertado com pão e vinho.
De Alvará Pires Pacheco foi sobrinho e herdeiro Bernardim Ribeiro Pacheco; e a filha herdeira deste, D, Joanna de Menezes, casando com Luiz da Cunha, Se­nhor do Morgado de Paio Pires, levou os bens desta capela para aquele ramo dos Cunhas, dos quais pas­saram para os Condes de Lumiares, pelo casamento de Manoel Ignacio da Cunha, 6.° neto do Bernardim, com a 3.a Condessa, herdeira, de Lumiares.
Em seguida ao Capitulo, mas na parede meridional do claustro, havia a capela do Senhor preso á coluna, uma figura realista, quase de tamanho natural, nua, gotejando sangue do sitio dos açoites, da qual ainda vi alguns fragmentos.
Desta imagem diz Fr. Gaspar da Carnota que, indo ele mesmo mostrá-la a uma pessoa de distinção, o ho­mem, pondo os olhos no Senhor, «entre os horrores do maior espanto suspenso, e penetrado dos golpes dos açoutes, do aperto das cordas, desprezo e paciência de uma tão grande Magestade, não poude conter-se e prin­cipiou a chorar», balbuciando frases que mal se en­tendiam. Depois de sossegado um pouco, pediu que o ouvissem de confissão geral, e tem seguida pediu o hábito, que lhe deram, e professou nesta Casa.
Outro frade narra que tendo ouvido a confissão de um grande pecador, e duvidando dar-lhe absolvição, o homem, com sinais de contrição, pediu que o levasse a um sítio escuro aonde pudesse, com menos custo, fazer mais completa confissão de seus pecados. O confessor conduziu-o á capela, na qual a imagem se achava oculta por espessa cortina. Aí o impenitente ameaçou o frade de morte se o não absolvesse, livrando-o da ver­gonha de constar em público que não fora absolvido. O sacerdote correu de repente a cortina, e o pecador, assustado com a súbita aparição de tão natural figura, caiu-lhe aos pés, completamente aniquilado, sujeitou-se ás penitencias que o frade lhe impôs, e saiu publicando a todos a sua conversão. Foi em consequência deste inci­dente que trouxeram a imagem para o claustro.

Último Capítulo

No pavimento térreo, do lado ocidental do claustro, há uma casa que foi prisão dos refractários; outra, mais adiante, que servia de aula para o ensino das crianças da localidade; e no canto, pegado com a igreja, está a serventia para a casa da Portaria.
Na parte inferior da cerca, por baixo da ermida de Nossa Senhora da Graça, está o edifício que foi Presépio e hoje está desmantelado e servindo de cavalariça. Foi mandado fazer, em 1569, pela Infanta D. Maria, filha d'El-Rei D. Manuel, que, achando-se em Alenquer com a cunhada, a Rainha D. Catarina, tendo ambas abandonado Lisboa por causa da peste que então rei­nava, veio com ela em romaria para aqui.
Ainda existia em 1860, mas já muito estragado, por­que a madeira do telhado apodreceu, e as imagens, mui­tas das quais eram de barro cru coberto de gesso e ver­niz, estavam desfeitas pela chuva que penetrava. Entre­tanto, via-se que tinha sido grandioso, e que as figuras eram muito naturais e bem moldadas. O edifício estava dividido em duas partes por um arco de cantaria, então aberto, mas hoje com o vão cheio de alvenaria. Aquém do arco era o recinto aonde se juntavam os espectado­res, detidos por um gradeamento. Esta parte ainda se conserva, e tem as paredes revestidas de um mosaico de conchas e pedaços de louça, de bonito desenho, e de muita paciência na fabricação.
Do arco estava um anjo dependurado, anunciando a boa nova: «Natus est vobis hodie salvator qui es Christus».
Além do arco, no pavimento térreo e no meio, em formosa gruta, formada de estalactites, escorias, conchas e louça, estava o Menino Deus, no berço, com seus pães, e o coro angélico. De um e outro lado viam-se as portas da Cidade Santa, e da parte alta desta, que estava no fundo e representada por casas, chafarizes, moinho de vento, etc., tudo em miniatura, desciam os Reis Magos com seus séquitos, e gente de todas as classes do povo, admiravelmente esculpidas, no tamanho de cinquenta centímetros de altura, que se dirigiam ás portas para admirar o recém-nascido Salvador do Mundo.
Ao lado da entrada principal das casas do antigo convento há um arco, hoje tapado, que era outrora a comunicação entre a portaria e a cerca.
Sobre o pórtico, que é moderno, lê-se, gravado em pedra, a seguinte decima, que naturalmente foi, em tempo, considerada um primor porque existiu também em letra grada, pintada em azulejo noutra parte (26):

Se a Moysés por Deus foi dada
No Sinay a Lei escripta,
Catharina, por mayor dita,
Lá foi dos anjos levada:
Seja a figura sagrada,
Que he mais santo o figurado,
Pois se lhe deo elevado
Em figura a Lei Divina,
Deo na graça a Catharina
Mais que a Moysés tinha dado.

Por esta frente não havia entrada, no tempo dos frades.
Perto da casa de habitação, a ermida da Anunciação está ainda em bom estado de conservação, devido, tal­vez, a ser de construção mais moderna que as outras, das quais, na mata de baixo, apenas existe, com figu­ras, a capela da Apresentação no templo. No meio daquela mata havia ainda, em 1870, uma capelinha com uma imagem de S. João Baptista, que Frei Gaspar da Carnota trouxe de Alhandra em 1591. Tinha sido ofertada pelo Infante D. Luiz, filho d’El-Rei D. Ma­nuel, á igreja daquela vila; mas, por ser muito pesada, se não pôs no altar e, estando em arrecadação, depressa ficou em estado tal que não houve dúvida em a ceder para este convento. Fez-se a capelinha para a receber; e, em um nicho sobre a porta, se pôs uma ca­beça do mesmo santo, obra primorosa, que a Condessa da Castanheira tinha dado a Frei Marcos de Lisboa, por­que era muito particularmente seu devoto.
Esta capelinha de S, João ficou completamente ar­ruinada pelas fervidas que no ano, terrivelmente invernoso, de 1876, tiveram lugar na mata de baixo e de cima, chegando a ameaçar a própria casa.
Nesta parte da quinta está a Fonte da Samaritana, que nos últimos cinquenta anos nunca tem deixado de dar, com maior ou menor fartura, a sua deliciosa e fresca água. Aí ainda se admiram as pesadas e sólidas mesas de pedra; a imagem de Santa Barbara, no seu nicho, advogada contra os trovões e raios; e os belos azulejos representando as Bodas de Cana, o Milagre dos Cinco Pães e Dois Peixinhos, a Ceia em casa do homem abastado de Carpenaum e a cena de Madalena lavando os pés do Divino Mestre: mas falta o poço com seu dístico, Dá mihi bibere, que estava no nicho grande, sobre a bica, e as figuras do Senhor de um lado, e da Samaritana do outro, com seu balde, que tudo o vandalismo ignorante fez desaparecer.
Na Mata de cima as capelas abundavam, e algumas ainda existem; mas sem figuras. Estas ainda se viam há quarenta anos, mas em estado tal de delapidação que inspiravam no vulgo mais hilaridade que respeito; e por isso entendeu-se ser mais correcto enterra-las, como se fez. As imagens das três Marias, que desciam pela escada da Ascensão para a sepultura, que ficava por baixo do enorme penedo aonde Ruperto em tempo se alojara, tinham vindo do Convento de Lisboa, trazidas por Frei Francisco Noé, uma das luzes da Ordem.
Os formosos pinheiros, que ficam da serra para cima, devem ter sido plantados pouco depois da aquisição do terreno, em 1546. Um deles, que caiu, por si, em 1887, deu, depois de falquejado, um toro de 4m,50 de comprido por lm,0 de grossura em cada sentido. No topo contaram-se 285 anéis, correspondentes a, pelo menos, outros tantos anos de existência.
Os corvos de que fala Frei Agostinho de Santa Ma­ria, quando trata de Nossa Senhora da Graça, ainda hoje, dois séculos e meio decorridos, vêem, anualmente, fazer aqui seus ninhos e criar os filhos, retirando-se depois para outra parte.
Em cada lado da cerca há uma porta de saída; mas é claro que, no tempo dos frades, não devia haver senão a principal. Com efeito, as do fundo e do sul são de 1887; e a do muro de cima foi aberta, pouco mais ou menos no centro, pelo Sr. Kantzow, e mudada para canto do sudeste, onde actualmente se acha, pelo Conde da Carnota. O logradouro, para o sul da cerca, chamasse, desde épocas remotas, mata da Portinha; mas será por causa de um postigo que se vê ter havido no muro daquelle lado e que, provavelmente, foi aberto, em tempo, para facilitar as obras de construção.

Depois do que fora dito deste fidalgo, no artigo an­tecedente, não serão talvez inúteis alguns apontamentos sobre a sua vida, para demonstrar ao leitor o grande merecimento do vulto cujos ossos repousaram alguns anos sob a campa da capela-mor da igreja que ele erigiu, e depois foram passados para outro sítio, e mais tarde dis­persos, graças á incúria dos seus descendentes, e á avareza dos frades.
É António Corrêa um dos capitães que mais fama adquiriu nas guerras da índia, e que mais contribuiu para a ampliação e consolidação do império português naquelas paragens. Nascendo em 1490, acompanhou seu pai para a Índia, quando ainda, de tenra idade. Ayres Corrêa, o pai, era feitor de Calicut, valente guerreiro e rico pro­prietário, tendo algumas naus suas. Em 1500, quando António contava apenas dez anos, houve um levanta­mento dos Índios de Calicut, em que os cristãos, ataca­dos de improviso, foram derrotados; e entre os mortos achou-se Ayres Corrêa.
Dos últimos que puderam fugir á carnificina foram cinco frades e um marujo, que, apesar de mal feridos, tiveram dó da infeliz criança que tão cedo ficara órfã, e levaram António Corrêa para bordo de uma das naus, aonde se foi criando, e em poucos anos tirou terrível desforra pela morte do pai.
A primeira vez que o achamos pelejando foi em 1510, na defesa de Cafim, aonde ocupou uma brilhante posição entre os numerosos fidalgos que lá se acharam. Depois, o seu nome aparece em quase todos os feitos de armas naquelas terras. Numa incursão que Nuno Fernandes fez pelas terras dos índios, em 1511, lá se achava. Em 1518 foi mandado a Malaca, com duas naus, e daí foi com quatro naus a Pegu, para onde ia nomeado embai­xador. Chegando a Malaca, que se achava sitiada, fez levantar o cerco; e depois, seguindo a Pegu, fez um tra­tado com o rei da terra. Voltando novamente a Malaca ofereceu-se para castigar o rei de Bintão, que se tinha levantado contra os portugueses; e, apesar das dificuldades do terreno e o número dos inimigos, o desbaratou de tal forma que o rei recolheu-se á sua capital. António Corrêa, voltando á Índia carregado do rico despojo que tomara, foi recebido com os maiores festejos e honras.
Na armada grande que foi sobre Diu, em 1521, An­tónio Corrêa comandava uma nau, e o irmão Ayres, outra; e foi ele um dos que Diogo Lopes de Sequeira consultou sobre o sítio em que devia erigir uma fortaleza próxima á cidade.
Em Junho do mesmo ano foi mandado á ilha de Baharem, castigar o tirano Mochrim que se tinha revol­tado contra o rei de Ormuz, seu direito senhor. Chegada a frota á ilha, Corrêa mandou atacar a capital, em 27 de Julho, e após valente peleja tomou a cidade e matou Mochrim. Aqui ficou o capitão ferido num braço; e seu irmão, Ayres, de muito ferido que estava, caiu, e por pouco não morreu. Restabelecida a ordem, Corrêa partiu para Ormuz a reunir-se a seu tio e chefe, Diogo Lopes, para procederem á construção da fortaleza de Diu.
Chegando a Chaul, soube que Diogo Lopes já tinha partido; e lá ficou esperando novas ordens. Um dos ca­pitães índios, chamado Hagamahamied, veio a Chaul com uma grande armada alcança-lo; mas António Corrêa, apesar de estar quase exausto de pólvora, deu tão boa conta de si, que o índio teve de se retirar com grande perda de gente,
Eis, em resumo, os feitos mais salientes da vida deste ilustre soldado das índias. Voltando á pátria, coberto de riqueza e gloria, D. João III lhe ordenou que, em me­mória da ilha que tomou, juntasse o nome de Baharem ao seu apelido de Corrêa; e deu-lhe por armas uma cabeça coroada, escorrendo sangue, em memória do rei Mo­chrim que degolou.
António Corrêa Baharem morreu em 1566. Dele diz um autor moderno:
«Durante o governo de Lopes Soares de Albergaria e de Diogo Lopes de Sequeira, foi António Corrêa, o vencedor de Baharem e Chaul, o herói do Oriente, o vulto prestigioso que deslumbrou os índios. Vimos como este herói, filho de Ayres Corrêa, o feitor de Calicut, escapara, graças á dedicação de um mari­nheiro, aos golpes dos inimigos. A morte do pai vingou ele amplamente; e o seu nome foi repetido com terror por todos os ecos da índia.»
Pois leitor, desse herói, cujas cinzas mereciam um monumento para recordação dos seus feitos nos séculos vindouros, nem ao menos resta a campa que marcava o sítio onde seus ossos repousam.

Sic transit gloria mundi.

O seu epitáfio, conforme existia em 1825, era o seguinte:

Esta capella e sepultura é de António Corrêa Baharem, do conselho d’El-Rei D, João III, e de D. Isabel de Castro sua, mulher e dos seus her­deiros. Faleceu a 17 de Outubro de 1566.


NOTAS E APONTAMENTOS DAS 1ª, 2ª, 3ª e 4ª EDIÇÕES:
Aqui se vai dar notícia das modificações que se fi­zeram na Casa da Carnota, nas obras de restauro e con­servação que lhe foram feitas no decurso dos anos de 1942 a 1944.

(1) Esta cópia existe no arquivo da Carnota. (Voltar ao artigo)
(2) Este parágrafo difere do contido na 2.ª edição deste trabalho. As quatro colunas que estavam no claustro, foram apeadas e metidas na fachada do lado poente. As duas que se encontram partidas aguardam ser colocadas num pe­queno museu que vai ser organizado. (Voltar ao artigo)
(3) Este parágrafo não se encontra na 2.ª edição deste trabalho. (Voltar ao artigo)
(4) Todo este parágrafo não se encontra na 2.ª edição deste trabalho. (Voltar ao artigo)
(5) Na segunda edição tem o seguinte acrescentamento: (Veja-se a Parte IX, Fase. I desta obra).(Voltar ao artigo)
(6) Este parágrafo ao aparece na 3.ª edição. Não se en­contra, pois na 2.ª (Voltar ao artigo)
(7) A fonte que estava incorporada na constru­ção sobre a qual assentavam as quatro co­lunas de Ceuta, a que se refere a nota l, e que se achava no centro do claustro, foi recolocada no seu lugar primitivo, no pátio. (Voltar ao artigo)
(8) Nenhuma destas imagens já existia quando das obras realizadas em 1942/1944. (Voltar ao artigo)
(9) Nenhuma destas imagens já existia quando das obras realizadas em 1942/1944. (Voltar ao artigo)
(10) Os azulejos aos quais esta nota se refere, estão substituídos por outros modernos, já sem os dizeres. (Voltar ao artigo)



(11) Estes factos encontram-se descritos em dois painéis de azulejos, que foram arrancados do seu lugar primitivo (antiga capela, hoje celeiro) e colocados no primeiro e segundo pisos do actual claustro. O lambril do pri­meiro piso já existia, mas todos os outros painéis do segundo piso, foram arrancados das paredes da referida capela e colocados onde hoje se encontram.
(12) Estes azulejos que forravam a capela-mor da antiga Igreja foram mudados durante as obras 1942/1944 para a actual capela.
(13) Na 2.a edição termina aqui este parágrafo.
(14) No plano geral das obras, esta sala de bi­lhar desapareceu para dar lugar à escada principal. A sala de bilhar ficava sensivel­mente no plano onde hoje se encontra a galeria, ao topo da referida escada. No sí­tio do armazém é de onde nasce hoje a refe­rida escada. O fogão foi também concebido no plano das obras de 1942/1944, e o painel do archeiro foi adquirido em Lisboa, numa casa da Rua da Bela Vista, à Lapa, conjuntamente com os azulejos policromos que foram colocados nas paredes do largo.
(15) Na 2.a edição em vez de preparo», diz-se «inspecção».
(16) Estes vitrais foram feitos pela mão de Gui­lherme João Carlos Henriques.
(17) Do lado do altar de S. Francisco existe agora uma outra chapa de metal na qual se lê o seguinte: Em saudosa memória de Guilher­me João Carlos Henriques. Nascido em Londres em 27/3/1846 e falecido em 24/5/1922 e de João Carlos Henriques, nascido nesta quinta em 4/2/1870 e fale­cido em 20/1/194.1. João Veiga Henriques mandou colocar esta lápida.
(18) e (19) Estes parágrafos não se contêm na 2.ª edição deste livro
(20) Quer na 2.ª quer na 3.ª edições, certamente por gralha, diz «enterrado».
(21) Este parágrafo não está na 2.ª edição deste livro.
(22) A partir deste ponto, até ao fim da nota acerca de Ma­nuel de Mesquita, nada se encontra na 2.ª edição deste trabalho.
(23) Este tanque regressou ao seu lugar primi­tivo, quando das obras. Sobre as colunas vide nota n.º 2.
(24) Este período não se encontra na 2.ª edição deste tra­balho.
(25) Na 2,ª edição diz-se «é o seguinte».
(26) Esta décima, gravada em pedra foi mudada para a fachada do lado sul.
LUCIANO RIBEIRO.


Sobre o Autor


Biografia
Guilherme João Carlos Henriques (da Carnota) era inglês, natural de Londres, onde nasceu em 27 de Março de 1846. Inglês, portanto, jurae solis e jurea sanguinis, o seu nome de baptismo era William John Charles Henry.
Veio para Portugal em Janeiro de 1860, tinha então 14 anos. Em Portugal viveu com o seu padrinho, John Smith Athelstane, que foi em Portugal o primeiro Conde de Carnota, e era descendente do Rei Eduardo Athelstane, o qual reinou em Inglaterra de 817 a 837. Pouco depois da sua vinda, requereu em Portugal para usar o nome de Guilherme João Carlos Henriques, tendo sido seu padrinho neste segundo baptismo, em que abraçou a religião católica, pois até então era protestante, o Du­que de Saldanha, que ao tempo morava em Lisboa, no Pátio do Geraldes.
Fixou residência na Quinta da Carnota, no concelho de Alenquer, propriedade do Conde da Carnota, her­dando deste aquela quinta magnífica, por sua morte, em 1886.
Guilherme Henriques, a quem a boa gente do povo do concelho de Alenquer conhecia por «O inglês da Carnota», designação que se conservou dada a seu filho João Carlos Henriques e se mantém ainda hoje, pois assim é conhecido seu neto o Sr. João Veiga Henriques, gastou a sua vida entre os labores da sua Quinta da Carnota, à qual tanto queria, e os seus estudos. Foi um self made man.
Guilherme Henriques foi educado à maneira inglesa. Era um gentleman. Lembramo-nos bem e com admiração da sua figura, que, apesar de decorridos quase 5 lustros após a sua morte, ainda está presente na memória das gentes do concelho de Alenquer. Essa gente via nele um amigo. Graças a Deus, já vemos que nem sempre Lês morts vont vite. Os homens passam, mas a sua memória fica, perdura, mormente quando esses homens nos lega­ram alguma coisa classificadora da sua personalidade e que, muitas vezes, marca uma época.
Guilherme João Carlos Henriques (da Carnota) enfi­leira nesse número. Gastou a sua vida a trabalhar, legan­do-nos uma série de estudos importantes. Enfim, como muito bem disse um poeta nosso:

Que a vida já gastada em buscar vida,
Falta para a lograr quando se alcança.


É bem certo!... Assim tem sucedido a tanta gente.
O início dos seus trabalhos literários fê-lo Guilherme João Carlos Henriques (da Carnota) na colaboração dada ao Conde da Carnota na colectânea das Memórias do Marquês de Pombal. O Conde da Carnota vivia na sua quinta e era Guilherme Henriques quem lhe fazia as buscas para a sua investigação.
O crítico do «Times» observa, ao falar das Memórias do Marquês de Pombal, publicadas pelo Conde da Carnota:
«Fechando o nosso resumo desta biografia, tão notá­vel em todos os seus detalhes, podemos observar que é caso raro um biógrafo achar-se senhor de tanta maté­ria, como foi a sorte do Conde da Carnota reunir. Tendo livre acesso aos despachos públicos de Inglaterra e Por­tugal, ele junta também o poder ilimitado de rever os diários e papéis particulares da família, etc.»
Era o acesso fácil aos arquivos, aos quais Guilherme Henriques ia fazer as investigações precisas a seu pa­drinho, que abria o horizonte para os estudos realizados mais tarde.
O seu labor literário foi grande. Apaixonado pela terra onde se fixou, procurou estudá-la, analisando-a sob o seu aspecto histórico, sob o aspecto económico, sob o aspecto artístico e monumental e ainda a alguns dos seus homens notáveis.
O próprio escritor nos dá a confirmação do afirmado, quer na «Introdução» da 1.a edição do Alenquer e seu Concelho, quer ainda na que propôs aos seus Inéditos Goesianos.


A obra literária:
a) Obras referentes a Alenquer e seu Concelho.
Guilherme Henriques foi, na verdade, o primeiro cro­nista de Alenquer.
O conjunto de trabalhos componentes deste grupo afasta tanto o seu autor daqueles que anteriormente se ocuparam daquela região, que lhe dão efectivamente a primazia.
Lançou-se na feitura de uma monografia de Alen­quer. Primeiramente, ensaiou um trabalho total de con­junto. Depois, ensaiado o estudo, publicado este, verificou, e bem, que não era em um só volume que podia escrever-se uma monografia completa de uma região onde, por uma lado a história se leva até às mais antigas memórias da vida humana na península, e que, mercê de variadas razões, teve uma categoria sempre grande na vida dos povos; por outro lado, o desenvolvimento económico foi também sempre de importância. Assim, re­solveu em nova edição desdobrar o trabalho e publicá-lo, dividindo-o em séries, várias, cujo plano por certo esta­beleceu, mas que não nos deixou indicado em qualquer dos volumes posteriormente publicados. Aparece-nos assim, na 2.a edição do seu Alenquer e seu Concelho, a obra dividida em várias partes, que, a seguir, descreve­mos, ainda que sumariamente.
Não dispôs dos elementos de que hoje dispomos. Não conheceu documentos que hoje são conhecidos, e que lhe teriam permitido tirar ilações que, assim, não pôde tirar.
Se bem que, no tempo em que trabalhou, os moldes em que hoje assentam as monografias não estivessem es­tabelecidos, teve a boa visão da doutrina em que devia assentar o seu estudo, e fez um trabalho consciencioso e sério que abriu bastante o caminho a outros que poste­riormente foram feitos. Dele nos servimos largamente rios estudos que também realizámos relativos ao conce­lho de Alenquer. Compõe-se este grupo das obras referentes a Alenquer das seguintes espécies:

1.° Um volume denominado Alenquer e seu Concelho impresso em Lisboa, na Tipografia Universal, em 1873. In 4.° de 316 páginas e 4 In., ilustrado com 4 litografias em hors text, representando D. Beatriz de Gusmão, Damião de Goes, quinta da Carnota, e as duas lápides que se encontram sobre o portal da Igreja de S. Francisco. No final, em folha desdobrável, um mapa litografado do concelho de Alenquer. Quer do mapa quer das lápides, foram ambas as litografias feitas pelo próprio Guilherme Henriques. (140x220 mm, pp316, Capa dura)
Este trabalho valeu a seu autor ser condecorado com a comenda da Ordem Militar de Cristo.
Neste volume trabalha o autor todo o concelho de Alenquer. Claro está que o estudo é bastante: sumário e representa o primeiro ensaio de uma obra de conjunto acerca daquele concelho. Tanto assim o considerou Hen­riques, que nos deu depois uma segunda edição, infeliz­mente inacabada, em que as coisas já tomam outro as­pecto. Desta 2.a edição não se conhece o plano. Henri­ques não o expôs em nenhum dos volumes publicados, nem seu neto, o Sr. João Veiga Henriques, que muito nos auxiliou neste trabalho pondo, à nossa disposição livros e manuscritos de seu avô, encontrou alguma coisa que pudesse orientarmos acerca desse plano que evidente­mente existiu. O certo é que nos aparecem os volumes seguintes:

2.° — Alenquer e seu Concelho — 2.a edição.
Parte IX — «Bibliografia Alenquerense».
Fascículo II— «A Relação de Duarte Corrêa».
Publicado 'em Alenquer, pela Tip. e Papelaria Cam­peão & C.a.
Não se pode admitir que Guilherme Henriques come­çasse esta edição em 1901 pela parte IX sem ter uma ordem qualquer preestabelecida.
Trata-se da «Relação do Alevantamento de Ximabara e de seu notável cerco, e de várias mortes de nossos por­tugueses pela Fé».
O autor, Duarte Corrêa, fazia parte da Companhia de Jesus, era familiar do Santo Ofício e natural de Alenquer.
Foi pela primeira vez publicada esta Relação em Lis­boa, por Manuel da Silva, no ano de 1643.
Desta obra de Duarte Corrêa publicou Guilherme Henriques outra edição em tradução inglesa, com o título «An account of the Rising at Ximabara», também saída da Tipografia H. Campeão & C.a, de Alenquer, no mes­mo ano de 1901.

3.° — Alenquer e seu Concelho — 2.a edição.
Parte IX — «Bibliografia Alenquerense».
Fascículo III — As obras de Manuel de Mesquita Perestrelo.
1.°— «Naufrágio da Nau S. Bento».
2.°—«O Roteiro».
Foi também impresso em Alenquer, na Tipografia de H. Campeão & C.% no mesmo ano de 1901.
O Naufrágio da Nau S. Bento teve a sua primeira edição em Coimbra, por João de Barreira, em 1564. O Roteiro não consta que fosse impresso em vida do seu autor. Se foi publicado, não há notícia de exemplar algum conhecido. Em 1681, porém, saiu na Arte Prática de Navegar, de Luís Serrão Pimentel, a páginas 364 e se­guintes; em 1699, na Arte de Navegar de Manuel Pimentel, filho do anterior, a páginas 382 e seguintes, e a páginas 446 e seguintes da edição do último livro citado, publicado em 1746. Este Roteiro foi aproveitado por Aleixo da Mota, cosmógrafo da carreira da índia em 1598 e autor do Roteiro da Navegação da índia. Foi traduzido para francês por Monnevillete, que o inseriu no seu Neptune Oriental.
O manuscrito existe no magnífico arquivo de Évora, com a carta e as figuras das conhecenças.
A razão pela qual Guilherme Henriques fez incluir estes trabalhos de Manuel Mesquita Perestrelo, como o de Duarte Corrêa, na «Bibliografia Alenquerense» foi o facto de seus autores serem naturais do concelho de Alen­quer. Parece que Henriques pensava em juntar os traba­lhos dos naturais do concelho, formando com eles uma colecção a que chamou «Bibliografia Alenquerense».
Este Manuel de Mesquita Perestrelo era natural da quinta da Cabreira, hoje casal da Cabreira, da fregue­sia de Santo Estêvão, Este mesmo Perestrelo era parente de vários navegadores notáveis. Era sobrinho de Mem Pegado, conhecido nos anais marítimos lusitanos do século de quinhentos, e parente da mulher de Cristóvão Colombo. Encontra-se enterrado na capela da quinta da Carnota.

4.° — Alenquer e seu Concelho — 2.ª edição.
Parte XI — «A Freguesia de Santo Estêvão».
Fascículo II — «O ex-Convento da Carnota».
Impresso em Lisboa, na oficina tipográfica A Libe­ral, em 1901.
(155x230 mm, 38pp, Capa mole)
Este trabalho de Henriques é de natureza diversa dos últimos apresentados. Aqui, seu autor faz um estudo por­menorizado de uma das mais antigas e belas propriedades do concelho, a sua magnífica quinta da Carnota, que, como já dissemos, herdou de seu padrinho, Conde da Camotta, e na qual o seu grande culto pelo passado, o seu bom gosto, e as suas possibilidades financeiras fizeram levar à cabo uma obra de reconstituição, de conservação e de perfeição notáveis. A quinta da Carnota ocupa o edifício e cerca onde em 1408 foi fundado o convento da Carnota, de frades franciscanos, a quem D. João. I doou um terreno que para tal adquiriu às freiras de Odivelas, onde havia uma ermidazinha com uma imagem de Santa Catarina, que viera da capela primitiva do con­vento daquele orago junto a Alenquer, quando foi arrui­nada pelas cheias do rio que naquela vila passa. Os fun­dadores de tal convento foram Fr. Diogo de Árias, asturiano, grande letrado e pregador, Fr. Gonçalo Marinho, filho e herdeiro da casa de Altamira, Fr. Pedro de Alamamos, Fr. Francisco Sales e Fr. Garcia Montanos, todos espanhóis, que para Portugal vieram por finais do sé­culo XIV, na; altura da célebre dissenção conhecida na história pelo título de «o grande sisma Ocidental».
Ao convento então nascente doou também D. João I doze colunas de mármore que mandou trazer de Ceuta quando tomou aos infiéis aquela praça, em 1415.
Extintas as ordens religiosas em 1834, passou o con­vento a mãos de particulares.
Deste trabalho de que nos estamos ocupando publi­cou Guilherme Henriques nova edição, a 3.ª, em 1914, feita em Lisboa, na Tipografia José Assis & A. Coelho Dias, introduzindo-lhe vários acrescentamentos sobre a matéria publicada na edição anterior.
(150x225 mm, pp40, Capa mole)

5.° — Alenquer e seu Concelho — 2.ª edição: cor­recta e aumentada.
Parte X — «A Vila de Alenquer».
Impressa em Lisboa, por A Liberal, em 1902.
(165x240 mm, 235pp, Capa Mole)
Neste volume dá-nos o autor um estudo da vila de Alenquer debaixo de todos os seus aspectos.
Ali se estuda a velha vila de Alenquer, à luz de vária documentação. A parte monumental é vista com bastante minúcia. Muito ilustrado, este volume insere não só nu­merosas fotografias, como também desenhos de Ribeiro Cristino, natural do concelho, dessa geração de artistas que foram, além dele, seu pai e são seus filhos.
A obra de Guilherme Henriques acerca do concelho de Alenquer e de todas, em todos os tempos, a maior. Antes de Henriques, somente conhecemos em volume pró­prio, respeitante a Alenquer, os seguintes:
«Relação das freguesias e lugares que tem a Vila de Alenquer», por António Pereira da Silva, publicado em 1716;
«Memória sobre alguns melhoramentos possíveis na Vila e no Concelho de Alenquer», por Albino deAbranches Freire de Figueiredo, publicado em 1851;
«Relacion de la antiguidad y particularidades de Ia noble villa d’Alanquer», publicado sem data, nem nome de autor, nem lugar de impressão, e do qual somente conhecemos um exemplar existente na Biblioteca Na­cional de Lisboa;
Termina aqui o primeiro grupo dos trabalhos publi­cados por Guilherme Henriques.

b) Obras várias
Guilherme Henriques foi, como já dissemos, colabo­rador do Conde da Carnota, seu padrinho. Auxiliou-o nos seus trabalhos para a publicação das Memories of the Marquis de Pombal, 2.a edição, publicada em 1871 (230x155 mm, pp 387, Capa dura).

6.° — Carta ao Exm.° Senhor Duque de Saldanha expondo as ideias de «Um Homem do Povo». — Sobre as reformas que se acham necessárias no País.
Impresso em Lisboa, na Tipografia Universal, em 1870.
Este pequeno opúsculo aparece-nos com o pseudónimo «Um Homem do Povo».
Martinho da Fonseca, no seu «Subsídio para um di­cionário de pseudónimos, iniciais e obras anónimas», não inclui o pseudónimo «Um Homem do Povo»; porém, na 3.a secção do dicionário aponta este trabalho. Pela descrição que faz, supomos que não tenha visto o folheto, pela falta de indicações bibliográficas. Erra, porém, quando o atribui a Guilherme de Abreu e não a Gui­lherme João Carlos Henriques.
Estamos citando o folheto em presença de um exem­plar pertencente ao neto do seu autor o Sr. João Veiga Henriques.
Podemos dizer que a tiragem foi de 500 exemplares e que foi paga por 11$300 réis, no dia 2 de Julho de 1870. O exemplar que era de Guilherme Henriques, tem junto a factura-recibo da edição.
Além desta indicação, a l.a edição de Alenquer e seu Concelho tem na capa .,. por Guilherme João Carlos Henriques (da Carnota) autor da Carta ao Ex.mo Se­nhor Duque de Saldanha, Manuscritos que também vimos feitos pela sua mão assinam-se com aquele pseu­dónimo.
7.°— O Príncipe de Gales — Estudo Histórico, Bi­bliográfico e Genealógico sobre o ilustre viajante que, regressando da índia, vem abordar à «Ocidental Praia Lusitana ».
Impresso em Lisboa, na Tipografia Universal, em 1876.
Trata-se de um curioso estuda acerca daquele que mais tarde foi o Rei Eduardo VII de Inglaterra.
Foi escrito por ocasião da sua visita a Lisboa, à volta da viagem que fez à Índia.
No folheto, Henriques. historia as razões dos dife­rentes títulos do então Príncipe de Gales, narra ane­dotas da sua vida que honram o carácter desse homem que durante tantos anos ditou a moda ao mundo mas­culino e mais tarde tanta interferência teve na política do mundo. É ilustrado com um retraio litografado por Salema, representando o Príncipe de Gales.
8.° — Novo Guia Luso-Brasileiro do Viajante na Eu­ropa.
Impresso em Lisboa na Tipografia Ferreira, Lisboa & C.a em 1876.
Este trabalho de Guilherme Henriques é o primeiro roteiro de viagens em língua portuguesa. Os seus editores dizem no prefácio da necessidade que então havia de um livro deste género em Portugal. É um roteiro de viagens em Portugal, Espanha, França, Grã-Bretanha, Bélgica, Holanda, Suíça, Itália, Alemanha, Áustria, Rússia, Dina­marca, Suécia e Noruega. Indica os pontos mais impor­tantes para o viajante visitar, dá notícia de hotéis e, enfim, põe o vagamundo em contacto com as primeiras necessidades ao chegar a país estranho.
9.° — Inéditos Goesianos — são dois volumes ambos impressos na tipografia de Vicente da Silva & C.a, o pri­meiro em 1896 e o 2.° em 1899.
No 1.° volume ocupa-se Henriques de Ruy Dias de Goes, dividindo o livro em 3 partes: A l.a a sua ár­vore genealógica, a 2.a o seu testamento, a 3.a o testa­mento da sua esposa, Isabel Gomes de Limi. O 2.° volume trata do processo na Inquisição, documentos avulsos e notas.
A grande maioria dos documentos apresentados por Henriques no 1.° volume dos Inéditos Goesianos encon­travam-se inéditos. Parte do processo na Inquisição que nos dá no 2.° volume também estava inédita, visto outra parte ter sido publicada por A. Lopes de Mendonça no Damião de Goes e a Inquisição de Portugal.
Este trabalho de Henriques, que é fundamental para os estudos goesianos, dá-nos também elementos interes­santes acerca do Santo Ofício. Encontra o estudioso nesta obra de Guilherme Henriques uma documentação preciosa para o estudo do cronista. Nele veio a reprodu­ção facsimilada do registo de óbito de Goes, que faleceu a 30 de Janeiro de 1574. Este documento fazia parte do cartório da Igreja de Santa Maria da Várzea, de Alemquer. Supomo-lo perdido, porquanto procurámos os livros deste cartório e não os encontrámos. Sabemos, porém, que em 1911 vieram para Lisboa. Onde param, se é que ainda existem, não sabemos. Outro tanto sucedeu com outros daquele concelho. A publicação, pois, feita por Guilherme Henriques, permite-nos poder afirmar a data da morte do famoso cronista de D. Manuel.
Inéditos Goesianos, é a mais notável obra acerca de Damião de Góes.
Segue-se na ordem cronológica:

10.a — Correspondência do Marechal Duque de Sal­danha — são 3 volumes impressos em Lisboa na Tipo­grafia da História de Portugal.
O 1.º volume trata das cartas das Majestades, de Lord Howard de "Walden, Sir G. H. Seymour, Duque de Pal­mela e José António de Azevedo Lemos, publicado em 1905 pela Tipografia da Empresa da História de Por­tugal.
Guilherme Henriques, neste volume não só nos dá a correspondência referida, como a precede de bastas no­tas biográficas dos dois ministros ingleses e de uma rela­ção cronológica de factos ocorridos durante a vida do Duque de Saldanha.
O 2.° volume compreende as cartas de Agostinho José Freire. Precede-as de numerosas notas biográficas da­quele homem de Estado, e de um resumo cronológico da biografia. Foi publicada em 1904 pela tipografia da Em­presa da História de Portugal.
O 3.° volume ocupa-se com cartas e ofícios confidenciais de Rodrigo da Fonseca Magalhães, ofícios reser­vados e confidenciais do Marechal Duque de Saldanha enviados de Madrid ao Ministro Rodrigo da Fonseca Ma­galhães, durante a missão de 1840/1841, e instruções que o Marechal levou para aquela missão. Publicado em 1906, na Tipografia da Empresa, da História de Portugal.
Todos estes volumes são ilustrados com bons retratos das pessoas de que tratam.
Este trabalho de Guilherme Henriques foi feito com as próprias cartas originais dirigidas ao Duque de Sal­danha. É fácil de perceber como Henriques as possuía. John Athelstane, padrinho de Henriques, foi secretário do Duque de Saldanha. Este foi casado em segundas núpcias com uma irmã de Athelstane, portanto, seu cunhado.
Por morte do Duque de Saldanha, viu-se que, em seu testamento, determinava que a Duquesa, sua viúva, ficava com o encargo de entregar os seus papeis e confiar o es­tudo e revisão destes — escritos, documentos e corres­pondência — a pessoa que para tal elegesse, com o fim de queimar os que julgasse prudente e utilizar os ou­tros como melhor julgasse para auxílio da história con­temporânea ou outra informação qualquer (1) Escolheu aquela Senhora a seu irmão, o Conde da Carnota, donde, por sua morte, e por herança, vieram os papeis às mãos de Guilherme Henriques.
Em seguida, porém, à morte de Saldanha, sua viúva verificou o desaparecimento de papeis, com arromba­mento de gavetas onde se encontravam (2). Que papeis seriam? Quem os teria tirado? Nada se sabe.
Henriques, sabendo o valor histórico que repre­sentava aquela colecção de cartas originais, não só pêlos nomes que as assinavam, mas também pêlos assuntos a que se referiam numa época um tanto agitada da vida da nação, doou esses magníficos exemplares à Biblioteca Nacional de Lisboa, com a condição de, com elas, se or­ganizar uma colecção denominada Carnotense, em home­nagem à memória do Conde de Carnota. Do mesmo modo doou ao Museu de Artilharia a espada que Salda­nha trazia na batalha de Torres Vedras, em 22 de De­zembro de 1846; a última banda que usou, uma colecção de diplomas de condecorações concedidas, ao Marechal e de nomeações para cargos militares, uma espada de hon­ra oferecida pela Société Universelle de Civilisation, de França, ao tenente general João Carlos de Saldanha, em 1833, com o respectivo diploma, um retrato a óleo do Marechal, vestido à paisana, e outro ainda dele pintado entre 1840 e 1850 pelo pintor alemão Boehm, irmão do escultor da Rainha Vitória, Sir Edgar Boehm.
A El.-Rei D. Carlos entregou Guilherme Henriques o diploma de concessão de outra espada de honra, igual à do Marechal, ao imperador D. Pedro IV, concessão tam­bém feita pela Société Universelle de Civilisation.
Assim, nem as cartas nem os outros objectos se per­derão. Foi um exemplo dado por um estrangeiro — es­trangeiro só de sangue — que tanto carecia ser imitado por tantíssima gente,

11.° — George Buchanan in the Lisbon Inquisition.
É um estudo sobre a figura do inglês Buchanan, publicado em Lisboa em 1906
G. Henriques sita nos seus Inéditos Goesianos, várias vezes, o processo da inquisição referente a Buchanan.

12.° — Descrição do Convento de Nossa Senhora dos Remédios dos Carmelitas Descalços.
Publicado em Lisboa em. 1910.
É uma espécie olissiponense de interesse. Dá-nos a conhecer em minúcia aquele antigo Convento de Lisboa.

13.°— A Bibliografia Goesiana.
É um opúsculo de 66 páginas publicado em 1911, em separata do «Boletim da Sociedade de Bibliófilos Bar­bosa Machado». O trabalho foi ali publicado nos núme­ros 2 e 3.
Neste seu trabalho Guilherme Henriques descreve-nos 63 espécies goesianas.
Como o autor nos declara, todas as espécies descri­tas ou faziam parte da sua colecção ou, quando as não tinha, viu-as, compulsou-as, examinou-as. A colecção do ilustre bibliófilo Aníbal Fernandes Tomás foi-lhe facul­tada, e ali, Henriques, encontrou boa parte de que ca­recia das obras de Damião de Goes.
Guilherme Henriques, que possuía uma boa Goesiana, tinha exemplares que foram do uso do próprio Damião de Goes. Assim, por exemplo, na primeira edição, que possuía, da crónica de D. Manuel, de 1566, quer na primeira, quer na segunda partes, está a assinatura auto­grafada de Goes.
Guilherme Henriques, nesta Bibliografia Goesiana, não se limita a enumerar e descrever as obras de Damião de Goes, antes ao contrário, também as estuda bibliograficamente. Bem interessante é o estudo que faz das edi­ções da Crónica de D. Manuel.

(1) Guilherme J. C. Henriques (da Carnota), Correspon­dência do Marechal Duque de Saldanha — pág. III.
(2) Idem, ibidem — pág. VIII.


c) Colaboração em revistas e jornais.
Esta é a parte mais difícil, pois não há alguma rela­ção dos escritos de Guilherme Henriques dispersos por jornais e revistas. Sabemos, porém, que, além de variados trabalhos acerca de marcas e patentes, em que, aliás, era perito, escreveu nos seguintes boletins, revistas ou jor­nais.
Sobre assuntos da sua simpatia espiritual, colaborou no Boletim da Real Associação dos Arqueólogos E Ar­quitectos Portugueses no Instituto, no Arquivo His­tórico e no Boletim da Sociedade de Bibliófilos Diogo Barbosa Machado.
Tem colaboração sua no jornal Damião de Góes, de Alenquer, onde em 3 de Janeiro de 1892 publicou um in­teressante artigo sobre a segunda tipografia existente no concelho de Alenquer e instalada na quinta da Mascote, em 1612.
Saído desta Tipografia temos notícia de um único exemplar bibliográfico, que se encontra na Biblioteca da Escola do Exército.
Em 1 de Janeiro de 1893 publicou outro artigo acer­ca da terceira tipografia em Alenquer, que funcionou no Convento da Carnota, em 1627. Logo a 29 do mesmo mês, novo artigo em que refere a primeira tipografia que existiu no concelho de Alenquer, e que foi instalada em Vila Verde dos Francos, em 1581.
A 23 de Junho de 1895, Guilherme Henriques dá-nos novo artigo sobre um Livro de Orações a Santo Antó­nio, no qual o autor se refere a uma imagem deste santo português exposta na quinta da Lagem, datado o livro de 1742.
Teve larga colaboração em Alenquerense, jornal que se publicava em Alenquer.
Colaborou no jornal Crença Liberal, onde pu­blicou artigos vários assinados com o pseudónimo «Um Homem do Povo». Colaborou ainda no Campeão das Províncias. Publicou folhetins vários com contos de sua autoria, assinados com as iniciais G. H. Neste mesmo jornal publicou crónicas assinadas F.
Pouco tempo antes da sua morte, começou a escrever em um jornal de Vila Franca de Xira a história daquele concelho, trabalho que ficou incompleto.
Pessoa culta, Guilherme Henriques escreveu contos baseados em vários dramas de Shakespeare, como A Tempestade.
Sabemos também que colaborou na revista inglesa «British Weekly».
Mais sabemos ainda que Henriques escreveu um opús­culo em inglês com o título The Truth, or Portugal under a liberal governement, que se publicou em Londres, em Novembro de 1872. A este trabalho faz referência no frontispício da primeira edição de Alenquer e seu Con­celho, quando, a seguir ao seu nome, diz: autor de cartaS ao Exm.° Senhor Duque de Saldanha e The Truth — nunca, porém, vimos qualquer exemplar.
Destes trabalhos de Guilherme Henriques tivemos conhecimento por um livro intitulado Peças Originais, que nos foi facultado pelo Sr. João Veiga Henriques, no qual seu avô escrevia alguns dos seus trabalhos e se en­contram colados recortes dos jornais onde publicou alguns deles. Por esse livro se vê bem ser Guilherme Hen­riques quem usava o pseudónimo «Um Homem do Povo» e que assinava vários artigos com as iniciais G. H. e F., como referimos.
Uma nota vamos acrescentar ao que está conhecido de Guilherme Henriques. Conhecíamo-lo como prosador. Não sabíamos, porém, que tinha cultivado a poesia. No mesmo livro que referimos encontravam-se várias poesias de que foi o autor. Utilizou a quadra, em que compôs lar­gamente, tendo produções bem interessantes. Encontrámos o começo de um poema «Alenquer» em alexandrinos, onde Henriques exaltava a sua terra adoptiva. Guilherme Henriques, que era inglês porque nasceu na Grã-bretanha, adaptou-se de tal modo à terra portuguesa que era de coração um português. Alenquer seduzia-o. A história brilhante desse rincão da nossa terra apaixonava-o. O contacto com a gente do povo bom que conhecemos afez-lhe o carácter e a alma, transmudada pela luz e pelo céu azul de Portugal.
A sua quinta da Carnota, com os seus cinco séculos de história vividos entre os muros e as preces conventuais deliciavam-no. Era um espírito e um homem de coração.
Foi Guilherme Henriques um dos fundadores da Câ­mara de Comércio Inglesa de Lisboa. Fê-lo com o seu entusiasmo, deu-lhe a sua colaboração. Elaborou para esse organismo o seu estatuto. Tão bem ou tão mal se de­sempenhou desse encargo que, tantos anos passados, com pequenas! Alterações, ainda hoje esse estatuto rege a vida daquele organismo.

Agora que passa o centenário do nascimento desse "varão ilustre, rendemos homenagem à sua memória, visto que ele foi tão prestante à nossa terra.
Não escolheu bem João Veiga Henriques incumbindo-nos de fazer esta biografia. Fizemo-la, porém, porque depois de Henriques, fomos nós quem mais se ocupou do seu assunto predilecto: A História de Alenquer. Fize-mo-lo com satisfação, pois assim podemos contribuir para prestar homenagem a alguém que admiramos.
Guilherme João Carlos Henriques (da Carnota) dei­xou este mundo em 22 de Maio de 1924. O semanário de Alenquer A Verdade publicou na sua primeira pá­gina uma crónica, em 25 do mesmo mês, em que relata, ainda que sumariamente, os trabalhos de Henriques sobre Alenquer.
Na Sala Nobre dos Paços do Concelho, naquela vila, há um magnífico retrato, a óleo, de Guilherme Henriques.
A Associação dos Arqueólogos Portugueses realizou neste ano uma sessão solene comemorativa do centenário do seu sócio Guilherme Henriques.

Requiescat in pace!

A partir de LUCIANO RIBEIRO (dos Arqueólogos Portugueses e do Instituto de Coimbra) in Prefácio de O EX-CONVENTO DA CARNOTA, HENRIQUES, Guilherme João Carlos, 4.ª Edição, Lisboa 1946.
(160x230 mm, pp89, Capa mole)