Depois de atenta leitura e leve estudo sobre o trabalho do meu trisavô Guilherme João Carlos Henriques achei por bem referenciá-lo numa enciclopédia virtual aqui na Internet, a Wikipédia. Mas à medida que ia levantando informarção para a colocar on-line, multiplicavam-se os interesses específicos e o número de nomes e referências que apareciam era cada vez maior, interligando-se numa interminável teia de panorama histórico que me prendeu desde o início até aqui, o que penso ser o primeiro passo no encalço do trabalho deste meu antepassado.

Em paralelo tenho vindo a desenvolver uma também iniciática investigação genealógica com o objectivo de reconstruir a árvore da famí­lia. Como nestes campos os resultados de busca se tornam tão dispersos como ricos, e como julgo como primeiro bem necessário a partilha de conhecimento, coloco todo o trabalho reunido que considero relevante em domí­nio público julgando com isso oferecer, através do meu lazer, alguma informação a quem por ela se interesse. Para esta 5.ª edição não oficial do trabalho de investigação sobre a Quinta da Carnota, transcrevi os textos referentes para o computador, corrigindo-os, adaptando-os e juntando-lhes toda a informação gráfica contemporãnea e antiga que já tinha da pesquisa genealógica. Sabendo que depois da sua aquisição pelo Conde de Carnota, a Quinta passou a ser uma casa de famí­lia que, embora já separadas, casa e família ainda hoje existem. Por isso e nas Épocas referentes ás edições da obra original apresento a versão aumentada de um novo valor, o valor histórico de uma famí­lia.
Guilherme Noronha

Junho de 2006

A Ermida

Tanto o autor do Santuário Maríano, como Fr. Martinho do Amor de Deus, confessam não poderem fixar a época em que a imagem que deu lugar á edificação desta ermida foi feita, podendo apenas fixar aquela em que começou a ser especialmente procurada pelos fieis.
A primitiva imagem (pois a actual é moderna, como logo hei de mostrar) era de pedra; mas tudo indica que pouca diferença teria da que agora existe. Achava-se, no princípio do século XVII, em um alpendre ou ermida aberta, na mata, quando uns barqueiros vindos ao que se diz de Abrantes, foram ter a Povos e lá, deixando seus barcos, vieram á Carnota. Viram esta imagem de Nossa Senhora da Graça, cobiçaram-na e levaram-na roubada. Chegaram outra vez a Povos; meteram o objecto do seu sacrílego furto em um dos barcos, e com a maré a favor e o vento em popa soltaram as velas.
Todos os barcos abalaram, sem a menor demora, ex­cepto aquele em que estava a imagem, que nem o vento nem a força de remos foi capaz de pôr em andamento.
Depois de varias e infrutíferas tentativas, sugeriu-se aos barqueiros dele a ideia que a dificuldade que encontravam nascia da Senhora não querer estar senão no local donde a tinham tirado. Saltaram em terra, fo­ram ter com o padre António Cosme, prior de Povos, que então era, confessaram o delito que tinham cometido, e entregaram-lhe a imagem para ser devolvida aos seus legítimos possuidores.
O prior avisou os frades do acontecido, e o Guardião mandou dois religiosos buscar a imagem. Quando estes se aproximavam, no regresso, toda a comunidade saiu para receber, condignamente, a milagrosa Senhora. Levaram-na para a igreja, e colocaram-na no altar-mor para, depois das Completas, a levarem á sua Casa. Era já sol-posto. O Guardião mandou reunir os religiosos, e saíram do convento em procissão, com a Senhora, para a mata, cantando a Ladainha.
Era já tão tarde que todos os passarinhos estavam recolhidos aos seus abrigos.
«Caso maravilhoso!» diz Frei Agostinho de Santa Maria (11). «Assim como os religiosos saíram da igreja cantando a sua Ladainha, foi vista uma grande multidão de passarinhos que, saindo das árvores aonde estavam recolhidos, formaram no ar um coro, em que mostravam ir cantando outra Ladainha, com grande melodia de vozes, louvando e festejando a Senhora; e o que causou maior admiração aos religiosos, foi verem os corvos que viviam e criavam por aquella mata, juntos em outra turma, fazer também outro coro grasnando, ao seu modo, e festejando a sua Senhora.
«Admirados os religiosos deste prodigioso sucesso, quiz o Guardião experimentar se aquelle ajuntamento das aves seria acaso; e assim, no dia seguinte, fez outra procissão ás mesmas horas; e não apareceu pássaro algum.»
Posta novamente a santa imagem na sua capelinha, á qual se fez então porta de fechar á chave, cresceu de tal modo a devoção, que foi necessário fazer-lhe nova casa e maior, o que se fez em 1680, sendo a trasladação feita, com muita pompa, em 23 de Novembro de aquele ano. Era então. Guardião, Frei Tomás de S. Francisco, natu­ral de uma aldeia vizinha.
Segundo Frei Martinho do Amor de Deus, era aquela a ermida aonde a Senhora se achava ao tempo do seu livro (1740), e que, por terem faltado as esmolas, estava ainda por completar; mas isto está em divergência com as inscrições que ainda existem no próprio edifício.
Frei Agostinho de Santa Maria conta mais que, tendo começado o círio de Lisboa a vir aqui prestar o seu culto, em uma das suas visitas alguma faúlha dos foguetes, fez com que pegasse fogo na mata. Imediatamente os fra­des saíram com a Senhora em procissão, puseram-na em frente do incêndio e logo se apagou.
Em 1727, segundo uma inscrição no edifício que adiante hei-de reproduzir, começou-se a edificação de um novo templo, que se fez a expensas do Círio de Lisboa, e com o auxílio do dos Refugidos. Oito anos depois a pri­meira missa foi dita nele em domingo do Espírito Santo de 1735.
Quando se assentou a primeira pedra daquele edifí­cio, os frades, para tornar a cerimonia mais imponente, resolveram levar a Senhora em procissão até ao sitio da obra. Faltava-lhes, porém, o equivalente da filarmónica moderna — um clarim; e ficaram pesarosos disso. De repente aparece um preto, ricamente vestido, coloca-se á testa da procissão, empunhando formoso clarim, e toca com perícia até a procissão se recolher, quando desapareceu tão misteriosamente como aparecera.
No tempo da Invasão, no princípio do século XIX, parte do exército francês ficou aqui aquartelada, e os soldados tentaram abrigar os seus cavalos na ermida. Os cavalos não quiseram entrar; e os homens, como bons católicos, entendendo que era a influência da imagem que lhes metia pavor, como maus católicos despedaçaram-na. Os festeiros mandaram, depois, fazer outra, a actual, que, estando já toda desconjuntada, foi completamente restaurada em 1896.
A ermida em 1860, via-se que tinha sido planeada para ser de abóbada de tijolo, e essa abóbada foi, com efeito, construída por 1880, quando começou a servir de celeiro; mas, naquele tempo, o tecto do corpo do edifí­cio era de madeira e abobadado, forrado de lona, e muito bem pintado e dourado. A capela-mor, era, como é, de abóbada de tijolo, forrada de bons azulejos, representando a coroação da Virgem (12). No coro havia abóbada de estuque com pintura a fresco, de fino desenho e cores, de que ainda há restos.
Os dourados e imitações de mármores, em todo o in­terior da capela-mor e no corpo da ermida, eram lindís­simos. Quando as imagens foram passadas para a igreja conventual, a uma do altar e o púlpito foram dados á igreja de Triana, em Alenquer, que andava, então, em restauração; e parte dos outros dourados a um fidalgo inglês, John Harvey, que os levou ao seu solar de Ickwell-Bury, perto de Biggleswade, no condado de Bedfordshire, em Inglaterra, onde se acham no vestíbulo do palácio.
Antes da extinção dos conventos, o círio de Lisboa, da corporação dos Bacalhoeiros, costumava aqui vir fes­tejar pelo Espírito Santo. Saíam de Lisboa e iam festejar primeiro o convento de Alverca; depois seguiam para a ermida de N. S. do Tojo, perto de Castanheira, aonde se fazia uma pequena festa; e por fim chegavam á Carnota. Aqui eram três dias de festas, com cavalinhos, e outros divertimentos. Em cada um dos dias vinham círios de outras terras, e assim a animação era sempre crescente.
Acabaram os frades, e o círio de Lisboa deixou de vir. Um círio de Pancas continuou a fazer uma pequena festa, uns anos por outros, até 1863, quando a licença lhes foi retirada por causa de excessos da parte do povo; e só se tornou a fazer, mas já com a imagem na igreja conventual, no ano de 1892. Desde então fez-se, anualmente, com excepção dos anos de 1896 (13) e 1903 até 1905 quando acabou de todo.
Entrando pela porta principal, nos azulejos da di­reita lê-se:

N'esta ermida, se dice a p.ra misa em Domingo do espirito santo do anno de 1735.

E nos da esquerda:

Esta ermida mandou fazer o cirio de Lix.ª e concorreu p.a ela o cirio dos refugidos.

Na parede lateral da direita há um grande e belo quadro de azulejos, representando o lançamento da primeira pedra desta ermida, e o aparecimento do preto. Por baixo tem a inscrição:

Quando se deytou a prmeyra pedra no alicercio d’esta ermida querendo os religiosos trazer a senhora em proçição e tendo m.ta pena de não terem hum clarim pa assistir a esta função e de emprouizo apareceu hum Preto q ueio tocando adiante da proçição athe se tornar a recolher a S raa sua Ermida ano de 1727.

O quadro correspondente, na outra parede, representa o episódio que teve lugar no cais dos Povos; mas, tanto neste como no primeiro, a paisagem é puramente de fantasia. Por baixo lê-se;

Sendo furtada esta imagem de N. S. da graça por certos homes de Ribatejo para a collocarem na sua terra e querendo dar a vela no caes de Pouos nunca o poderão conceguir e vendo que to­dos os mais Barcos o fazião sem nenhum impedim to entenderão ser a causa o furto que tinhão feito da dita Sra e tirando-a do barco logo aba­lou, e uindo os religiosos buscar a Sra em pro-çiçâo a colocarão na çua ermida e os passarinhos acompanharão com çeu canto a dita porçiçáo em çinal de tão boa uinda, no anno de 1647.

É provável que os azulejos que revestem as paredes da capela-mor, e que representam cenas da vida da Vir­gem Maria, sejam os que ornavam a ermida anterior a esta; porque são de um desenho e tom mais antigo e me­nos artístico.